TEMPESTADE TROPICAL: Ruína – um clássico esquecido do metal/punk brasileiro

A grande quantidade de bandas e discos lançados pelo mundo, ainda que em um gênero específico como o metal, faz com que seja muito difícil, senão impossível, acompanhar tudo que está rolando – ou rolou nos últimos anos. Com isso, muitas bandas e álbuns incríveis acabam passando despercebidos, ainda mais no undeground.

O Ruína é um desses casos. A banda de São Paulo/Curitiba ficou na ativa basicamente entre 2003 e 2007, quando fez poucos shows e gravou apenas uma demo e um disco full (autointitulado). E é exatamente sobre esse álbum incrível, lançado em 2005 (pela Cospe Fogo Gravações), que iremos falar neste post – ouvi o disco com frequência nos últimos dias e ele continua extremamente poderoso, uma mistura sem igual e muito própria de metal com punk, com influências que vão de Neurosis até Joy Division, passando por Tragedy e His Hero is Gone.

Tive a sorte de conhecer a banda lá em 2005 (apesar de nunca ter visto um show) por ter estudado com um dos integrantes, que me mostrou o álbum na época. Mas muita gente não teve essa oportunidade. Por isso, achei que estava mais do que na hora de outras pessoas poderem ouvir e saber mais sobre a história do grupo.

Para fazer isso, entrei em contato com três ex-integrantes da banda, que relembraram a trajetória do Ruína. Leia abaixo os principais momentos dessas conversas e escute o álbum!

 

INÍCIO DA BANDA / INFLUÊNCIAS

Pierre de Kerchove (guitarra/voz, ex-Constrito): O Ruína foi uma ideia do Marco “Jegão/Jegz” Parigot (vocal e guitarra, ex-Family e Odyssey). Em 2002/2003, ele ficou um tempo morando e trabalhando em Nova Iorque, onde assistiu a muitos shows que o deixaram com vontade de montar uma banda mais sombria quando de volta ao Brasil. Ele me procurou porque sabia que eu era fã de bandas como His Hero is Gone, Tragedy, Unhinged, Hiatus… esse tipo de banda crust com uma sonoridade mais melódica e sombria. Eu tocava no Constrito, que já era bem popular no meio underground, mas sentia falta de tocar algo mais simples (no Constrito era a busca eterna pelo riff elaborado, difícil de tocar…) e também estava afim de poder cantar e tocar ao mesmo tempo. Influenciados pelo Neurosis, queríamos poder dividir os vocais entre todos. Logo em seguida, chamamos o Thiago “Chacal” Behrndt (bateria) e o Gustavo “Guga” Vaz Gabriel (baixo – que tocava também bateria no Intifada) para integrar a banda. E, na minha opinião, foi a formação perfeita, nunca tive tanta afinidade musical como no Ruína. Todo mundo tocava muito bem e era muito criativo no que dizia respeito ao seu instrumento. Foi uma grande experiência de “democracia criativa”.

Thiago Behrndt (bateria, ex-Life Is A Life e Flama e atual Tropical Nightmare): Nós conversávamos muito sobre som. O Jegão também era muito assim. Algumas bandas que estavam sempre nas referências para riffs e baterias eram Joy Division, Metallica e Isis. Também me lembro que algumas músicas tinham nomes provisórios como Paradise Lost e Burzum. Principalmente na época da composição das três musicas que estão na nossa demo, Pierre e Jegão ouviam muito Tragedy e From Ashes Rise. Já na época que escrevemos as músicas do disco posso dizer que não tínhamos intenção de soar como outras bandas. Talvez percebemos que tínhamos achado um som e exploramos o desenvolvimento disso permitindo mais possibilidades rítmicas e o lance melódico entre as guitarras.

Gustavo Vaz Gabriel (baixo, ex-Noala, ex-Intifada e atual Jupiterian): Umas das maiores referências era o Tragedy, que surgiu naquela época, início dos anos 2000. Essa era a referência de qualidade para o som da banda, timbres, vocais e levadas muito poderosos. Mas as influências iam além: Discharge, Wipers, Joy Division, The Cure, Motörhead, Amebix, e por aí vai…

 

DINÂMICA DE COMPOSIÇÃO E CIDADES DIFERENTES (SP/CURITIBA)

Thiago: Sobre a composição do disco, o Jegão e o Pierre vinham com ideias, às vezes um riff que testávamos com diferentes batidas. Alguns sons começamos com bases de baixo que o Guga trouxe. Nos dávamos muito bem no estúdio. Havia abertura para opinar no que se fazia e assim evoluíamos os sons. E era sempre muito engraçado, até hoje lembro de umas piadas que rolavam. E nós obviamente gostávamos muito do som que fazíamos, havia uma alegria por isso e também por estar fazendo um som da hora que transmitisse sinceramente o que sentíamos.

Gustavo: No começo, o Marco estava morando em São Paulo, ficava mais fácil. Ele e o Pierre faziam as bases e geralmente os vocais das respectivas músicas. Algum vocal ou outro ficava por minha conta. Mas os dois eram as colunas criativas. O processo de composição era bem espontâneo, a gente se entendia muito bem, afinal os caras tinham bastante rodagem com bandas anteriores. Então logo já estávamos lançando a nossa demo com três sons, se não engano em 2004. Em 2005, estávamos eu e Marco morando em Curitiba, já tínhamos músicas prontas e viemos para São Paulo em Julho para gravar o debut.

Pierre: O Jegz morava em São Paulo na época, ele estava tentando virar tatuador profissional – temos todos muitas tatuagens dele, ele nos usava como cobaias para aprimorar o seu traço… Tanto que no encarte do disco as fotos são tatuagens que ele fez em cada um de nós. Isso foi na época da gravação da demo e do disco, entre 2004 e 2006. Depois de lançar o disco, fizemos poucos shows, creio que no máximo uns cinco ou seis. O Jegz ficou sem dinheiro e teve que voltar para Curitiba porque o custo de vida em São Paulo era muito alto. Isso atravancou bem o andar da banda; fizemos mais um último show em 2007. O Jegz vinha ocasionalmente para São Paulo, mas não dava para compor muito, só ensaiar mesmo. A banda acabou entrando num hiato e terminou de vez quando o Jegz nos deixou tirando sua própria vida em 2009. Ele faz muita falta até hoje, era um grande amigo e tinha um talento nato para música e tatuagem, sempre será lembrado e querido por muitos.

 

PROCESSO DE GRAVAÇÃO/PRODUÇÃO

Pierre: Gravámos o disco no estúdio Rocha, um marco na história do underground Brasileiro. O produtor/engenheiro de gravação do disco foi o multitalentos Bernardo Pacheco, que tocou e toca em diversas bandas e grava discos fodas até hoje. Ele é um cara que gosta de fuçar: reverbs, compressores, microfones… Ficámos perdendo um bom tempo de estúdio procurando o timbre perfeito para cada instrumento. E o fato de cada um na banda ser um bom instrumentista ajudou muito a modelar o som do disco junto com o know how do Bernardo, que divide o mesmo gosto musical que a gente.

Gustavo: Lembro que gravámos batera e baixo ao vivo, com a guia de guitarra também ao vivo, tudo sem metrônomo, e o resultado foi bem orgânico. Aí depois as guitarras e vocais. Foi um processo bem rápido, mas muito bem executado.

Thiago: A gravação não teve problema nenhum. Fizemos rápida, mas a mix foi embaçada. Tanto que precisámos fazer uma segunda mistura para ficar do jeito que queríamos. Da gravação, me lembro que o Jegão tinha muitos detalhes organizados para cada musica como timbres diferentes e detalhes melódicos que eu nunca tinha percebido antes da gravação. Me lembro também de um preset de reverb que o Bernardo achou num rack de efeitos que usamos em vários pontos de várias músicas.

 

POR QUE O ÁLBUM ENVELHECEU TÃO BEM

Gustavo: Acredito que buscávamos influências diversas sem cair no clichê dos estilos. Procurávamos refinar o som, para não soar cópia de outras bandas. Mesmo assim, também me surpreendo ouvindo o disco até hoje, um misto de raiva e tristeza com vontade de potência.

Thiago: O disco é um excelente registro do que foi o Ruína. Agradeço muito ao Pierre por ter nos incentivado a voltar para gravar porque a existência desse registro é muito importante para mim. Eu acho que ele envelheceu bem porque o som é criativo, até certo ponto transcende gêneros e tendências, e também tem uma paixão e intenção muito sinceras. Como eu disse, nós gostávamos muito de fazer os sons. Escrever músicas boas que expressam a nossa sensibilidade através do desenvolvimento daquele som que é um pouco bonito, um pouco pesado, um pouco melancólico. Isso era o que queríamos. Imagina, nem fazer show a gente tinha muito interesse como banda, fizemos uns três shows. Então acho que esse foco na composição e a sinceridade na intenção fazem o disco ser atemporal.

Pierre: Para mim, o Ruína foi um sopro breve, porém intenso de realização artística. Era uma banda que tinha potencial para decolar e a química musical entre nós foi uma das melhores que já tive. Eu acho que ele envelheceu bem porque o disco é original na sua sonoridade, isso veio muito dessa colaboração dos quatro. Cada um tinha uma visão musical distinta e o debate para conseguir fechar uma música era intenso, mas todos se respeitavam como músicos, então dessa troca nasceu algo. É um disco pesado emocionalmente para mim, a perda do nosso amigo se traduz nas letras que escrevíamos, um pouco como um prenúncio de algo que não tínhamos ideia de que poderia acontecer. Talvez seja essa sensação honesta que faz dele um disco atemporal.