BIZARRA LOCOMOTIVA:
Ao vivo no LAV – Lisboa ao Vivo [reportagem]

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Antes de mais, é bom frisar desde já que nada disto é normal. E se os hologramas e demais artifícios substitutos do ambiente único de um concerto a sério nunca pegaram, também esta brincadeira de ver concertos sentados no sofá de casa terá que se manter no seu devido lugar, ou seja, como uma conveniência, um mal menor, que neste momento somos forçados a ter como melhor opção. Que não se interprete isto como um desvalorizar da iniciativa, atenção – compreendemos perfeitamente que, ao contrário dos hologramas, esta prima pela necessidade e pela ausência de alternativas. Era isto ou nada, neste momento, e assim sendo, claro que preferimos isto. Mas é saudável fazer este preâmbulo face ao aparecimento de expressões como “new normal” e afins. Que esteja sempre presente que há hábitos que convém não perdermos, quando a pandemia for algo do passado. E se as bandas, promotores, salas e demais envolvidos vão precisar do nosso apoio nessa altura!

Posto isto, ataquemos então o que interessa, que foi um grande concerto que os Bizarra Locomotiva deram ontem à noite no LAV – Lisboa Ao Vivo, através da plataforma Gigs em Casa. Saudamos desde já a banda, uma das mais importantes e mais relevantes de todo o panorama nacional, transversal a estilos e a públicos, que certamente não teria necessidade de fazer este “sacrifício” de tocar para uma sala vazia, mas que, na data em que teria efectivamente voltado aos palcos se o mundo estivesse num estado normal, se aventurou, como sempre, sem medos por este território desbravado. Era notório algum desconforto (especialmente entre temas), particularmente do frontman Rui Sidónio, face à ausência da interacção que ele tanto gosta de ter com a sua “escumalha”. Como que uma besta enjaulada, sentia-se a vontade de gritar na cara de alguém, de passar o microfone aos malucos da primeira fila, e de se atirar em crowdsurf transpirado para o fim do concerto. Foi-se, apesar das circunstâncias, soltando com o tempo, e ao fim de alguns temas já estava ele a despir-se e a espojar-se pelo chão. O maior elogio que se pode fazer à qualidade tanto das composições da Locomotiva como à performance profissional e empenhada que tiveram é que, mesmo com tudo isto, o impacto dos malhões (agora a sério, há maior riffmaster que o Miguel Fonseca neste país?) foi próximo daquele a que já estamos habituados, mesmo com o quarteto a olhar para as paredes da sala e nós sentados em casa a beber cházinho.

O começo foi logo fortíssimo, com o trio «Na Febre De Ícaro», «Gatos Do Asfalto» e «Desgraçado De Bordo» a dar o mote de intensidade que toda a actuação viria a ter, apesar do som algo abafado da mistura que passava para o ouvinte. Melhorou substancialmente quando a banda abrandou e passou por dois dos seus melhores e mais agonizantemente arrastados temas, «Ergástulo» e «Sudário De Escamas» (este com uma figura sinistra em palco a segurar numa bíblia), dois colossos viscosos e viscerais que até tocados por um rádio de pilhas daqueles que levávamos à bola antigamente seriam devastadores. Foram uma espécie de ponto médio do concerto, numa altura em que as apropriadas projecções e a boa realização também marcavam pontos e iam ajudando à imersão, factor essencial num concerto destas características, à distância.

A segunda metade da prestação foi como que todo um crescendo (com o destaque habitual para a emblemática «Grifos De Deus», mas também para a creepiness rastejante de «Foges-me Em Chamas») até à explosão final com «O Anjo Exilado» (que mesmo sem a presença do Fernando Ribeiro desta vez, continua a ser um hino estrondoso) e o «Escaravelho» do costume a encerrar aquele que foi um grande concerto, já com Rui Sidónio a testar os filtros da censura através de uma nudez total, ainda que não frontal. Mesmo sem público (presente fisicamente, pelo menos), o homem arranja sempre maneira de fazer das suas.

No final, mixed feelings – por um lado, a satisfação de termos visto um concerto, seja lá de que forma for, ao fim de tanto tempo, reforçando as saudades brutas que temos disto tudo; por outro, a frustração de termos, na prática, “perdido” mais uma actuação extraordinária da Bizarra Locomotiva – que cada vez mais se reafirma como uma das grandes “vozes” da música nacional –, que certamente teria tido o seu impacto multiplicado pela presença física que tanto ansiamos que regresse brevemente. Nunca gostei tão pouco do meu sofá, caros amigos.

SETLIST:
Na Febre De Ícaro
Gatos Do Asfalto
Desgraçado De Bordo
Mortuário
Buraco Negro
Ergástulo
Sudário De Escamas
Flauta Do Leproso
Grifos De Deus
Na Ferida Um Verme
Foges-me Em Chamas
Engodo
O Anjo Exilado
Escaravelho