CLUTCH + THE INSPECTOR CLUZO @ Cineteatro Capitólio, Lisboa | 02.08.22 [reportagem]

Nós bem o tentamos negar, e combater, e agarrarmo-nos aos bons exemplos, que também os há, mas depois chegamos ao Capitólio pouco tempo antes da recepção de uma das bandas mais lendárias do rock contemporâneo, que nos visita pela primeira vez (tirando a noite anterior no Hard Club, claro) na sua longa carreira de 31 anos and counting, e a visão de uma sala desoladoramente meio despida atinge-nos como uma saca de tijolos na testa, e a velha realidade volta à tona — não somos um país de rock, pronto. Somos bons, claro que sim, e a recepção fantástica que foi dada às duas bandas assim o prova, mas somos poucos, muito poucos, no grande esquema das coisas. E desculpem-nos os ausentes, mas é Agosto, ou é 3.ª feira, ou “joga o Benfica” (que ontem até era literal — mas dava tempo mesmo assim!), no caso dos CLUTCH, não são desculpas válidas. Podem sê-lo para uma ou outra pessoa individual, mas não para o número de gente que faltava para a casa que mereciam. Nem o pobre do Mathieu Jourdain, o extraordinário baterista dos THE INSPECTOR CLUZO, teve densidade de gente suficiente em frente ao palco para fazer o stagedive como deve ser que tanto merecia.

E como o merecia! Que nos perdoem os Planet Of Zeus, inicialmente programados como banda de abertura quando o concerto foi originalmente anunciado pré-pandemia, que certamente também teriam rockado que nem gente grande, mas um dos pontos positivos do atraso sofrido por este evento foi mesmo a presença do duo francês. Muito menos conhecido internacionalmente do que seria justo, algo que até pode ser meio justificado pelo facto de que isto não é o seu day job, conforme é amplamente explicado pelo irrequieto vocalista/guitarrista Laurent Lacrouts ao longo da actuação. A música pode não ser, de facto, a sua actividade principal, mas a actividade principal está em todo o lado na sua música. Donos de uma quinta orgânica no Sudoeste de França (na região da Gasconha), disparam temas como «Running A Family Farm Is More Rock’n’Roll Than Playing Rock’n’Roll Music» ou «Saving The Geese» (ambos temas novos), mas apesar da toada geral de boa disposição, a mensagem não é vazia nem de humor só pelo humor – a tal «Saving The Geese», por exemplo, tem a ver com a actual legislação europeia altamente discutível para lidar com a gripe das aves, também tocaram uma nova chamada «The Armchair Activist» a criticar os “activistas de sofá”, para quem o mundo é sempre a preto e branco, como o título indica, e o Laurent, pelo meio de berros, falsetes e grandes riffs anafados, vai explicando tudo de forma sucinta mas clara – digamos que de forma suficiente para nunca parecer uma lição. Que os “fuck Monsanto!” e demais palavras de ordem em relação a esse assunto caiam um bocado na indiferença do público já seria de esperar, mas os minimamente atentos/interessados terão saído de lá mais bem informados, e isso já conta para alguma coisa. Mas como dissemos, a coisa nunca cai no aborrecimento da lição, e tudo é feito no espírito verdadeiro do rock’n’roll. Nem só de quintas vivem os The Inspector Cluzo, nas suas tripas está o rock, que «Rockophobia» (que até tem um verso sobre a pila do Iggy Pop) grita a plenos pulmões que nunca vai morrer, ou que «The Outsider» mantém nas franjas do mainstream, onde pertence. Laurent diz a certa altura, a falar do background jazz de Mathieu (que, repetimos, é um baterista fantástico), que a música precisa de mais silêncio, de mais dinâmica, uma recomendação que pratica de forma clara na sua música e cujos resultados são magníficos, amplificando de sobremaneira as partes mais intensas. Tudo isto já seriam credenciais que chegassem, e ingredientes suficientes para o grande concerto que foi, mas ainda havia a cereja de «Hey Hey, My My (Into The Black)», uma versão extraordinária de Neil Young & Crazy Horse, que não é para todos, mas que os gauleses despacharam com classe e personalidade. O final foi apoteótico, com pratos atirados para o photopit, chutos no bombo, feedback e porrada no que restava do kit, um chavascal delicioso de um calibre que já não víamos há algum tempo. Para quem os descobriu ontem à noite, é mais um grande duo de rock barulhento para juntar aos Beehover, Dÿse ou Lightning Bolt desta vida.

Estava assim o público devidamente aquecido para a segunda das datas de estreia dos CLUTCH em solo nacional, e o primeiro bom sinal logo desde os primeiros temas foi de que o setlist iria ser substancialmente diferente do da noite anterior, para os lisboetas que já tinham ido espreitar aquilo que poderíamos esperar em termos de escolhas. A discografia dos norte-americanos é vasta e consistente, sem grandes obrigações de tocar “aquela” e praticamente zero filler, pelo que se podem dar a liberdades destas e baralhar e voltar a dar de noite para noite. Claro que atingem sempre mais em cheio o coração individual de uns do que outros – pessoalmente, teria ficado ofendido pela ausência da «Earth Rocker» na noite portuense, por exemplo, tal como alguns não terão gostado de não ouvir «The Face» em Lisboa -, mas não há como ficar “chateado” muito tempo pela riqueza incrível dos vinte temas tocados, sejam eles quais forem. Se há consistência, também há uma variedade poucas vezes elogiada como deve ser no catálogo do quarteto. Como resistir à cavalgada imparável de «Crucial Velocity», ao twang sulista de «A Quick Death In Texas», ao refrão inesquecível da tal «Earth Rocker» (e há lá frase mais emblemática para uma banda deste género do que “If you’re gonna do it / Do it live on stage, or don’t do it at all“?), à forma natural como os dois temas novos tirados do vindouro «Sunrise On Slaughter Beach»We Strive For Excellence» e «Red Alert (Boss Metal Zone)») ou ao trio verdadeiramente incendiário que dispararam no encore, «The Regulator», «Electric Worry» e «Pure Rock Fury»? Só as três palavras desta última poderiam substituir esta conversa toda, porque resumem perfeitamente o que se passou no Capitólio, e o que se passa cada vez que os Clutch sobem ao palco. Tal é a fúria, e tal é a densidade de ROCK, assim mesmo em maiúsculas, “aos gritos”, que está condensada nesta música e nesta actuação, que nem nos apercebemos do comparativamente pouco que os Clutch usam para depois fazerem tanto. São a definição da banda “sem merdas” – quatro tipos normais, juntos desde o início (vá, o Roger Smalls esteve por lá cinco minutos antes do Neil, nem conta), vestidos como qualquer gajo ao nosso lado no café, dos quais só um é que se mexe do mesmo sítio onde está, uma guitarra (duas às vezes, pronto), um baixo, uma bateria, e a barba do Neil Fallon. Tantas bandas com produções rocambolescas (contra as quais não temos nada contra em princípio, mas é uma comparação) que só servem para mascarar música sem alma, e aqui temos este quatro tipos a viver quase exclusivamente da alma, há mais de três décadas. É quase poético, e dá vontade de, no fim, descer a Avenida da Liberdade a gritar na cara da malta que anda por ali e que não foi ao concerto, “qual é o vosso problema?“. Quando falámos com ele há uns dias, o Neil disse-nos que não fazia ideia do que ia encontrar em Portugal, que era esse o fascínio de andar em tour por sítios onde nunca esteve. Pois bem, agora já sabe, parece que adorou isto tudo, comida incluída (ganhou “four pounds in 72 hours“, diz ele, e que rico título para uma malha futura que aí está), e repetiu várias vezes que “we have to do this more often“. Nós já estamos a contar os dias para a próxima vez, ó Neil.

FOTOS: Solange Bonifácio

ALINHAMENTO:
Passive Restraints
X-Ray Visions
Firebirds!
Crucial Velocity
Burning Beard
We Strive For Excellence
The Soapmakers
A Quick Death In Texas
Earth Rocker
Ghoul Wrangler
(Notes From The Trial Of) La Curandera
Subtle Hustle
Mice And Gods
How To Shake Hands
Red Alert (Boss Metal Zone)
The Mob Goes Wild
Spacegrass
Encore:
The Regulator
Electric Worry
Pure Rock Fury