Einstürzende Neubauten

EINSTÜRZENDE NEUBAUTEN @ Aula Magna, Lisboa | 20.05.2022 [reportagem]

É um luxo que uma entidade do calibre dos Einstürzende Neubauten tenha desenvolvido uma relação tão calorosa com o nosso país ao longo dos anos. Não só parecem ter especial prazer em visitar-nos, como testemunham os vários concertos com que já nos brindaram em diversos pontos da sua carreira (hoje à noite, mais uma data na Guarda, depois da Casa da Música no Porto os ter recebido no dia anterior a esta aparição na Aula Magna), como também o público nacional responde sempre na mesma moeda, enchendo salas, participativo, conhecedor da obra, caloroso. Juntando a isso a recente ligação pessoal de Blixa Bargeld, que como o próprio relembrou durante esta actuação, passou a pandemia “escondido” em Portugal, no Algarve – e que hilariante que foi vê-lo, através do seu Instagram pessoal, a desafiar os seus dotes culinários com algumas iguarias muito próprias do nosso país durante esse período -, tendo inclusivamente sido vacinado por cá, é uma simbiose que faz de cada performance da lendária banda experimentalista de Berlim um acontecimento, com um ambiente muito próprio que é palpável horas antes da primeira nota ainda ter sido tocada.

E assim foi mais uma vez, ainda que as semelhanças tenham ficado em grande parte por aí no que diz respeito a comparações com anteriores visitas (com excepção da visita do dia anterior, no Porto, cujo alinhamento foi 100% igual, problemas técnicos sofridos na Casa da Música à parte). Os Neubauten de hoje, e por “hoje” entenda-se mais ou menos a última década e meia, que englobou os álbuns «Alles Wieder Offen», o “especial” «Lament» e o “novo” (era de facto novo quando o concerto foi originalmente anunciado, e recorde-se que o evento continuou a ter como objectivo a sua apresentação) «Alles In Allem», os únicos contemplados no alinhamento para além do marcante «Silence Is Sexy» – e não, nada para trás disso, cronologicamente falando – são uma besta substancialmente diferente do que eram. Nunca fizeram propriamente o mesmo álbum duas vezes, ou tiveram sequer o mesmo concerto duas vezes, comparando passagens em diferentes digressões, mas é seguro afirmar que a maturidade tem sido notória no output artístico de Blixa, Alexander Hacke, N. U. Unruh (os membros originais que restam) e companhia limitada (neste concerto, os já habituais Jochen Arbeit e Rudi Moser, com o teclista convidado Felix Gebhard). A maquinaria ainda está presente, e sim, os “instrumentos” alternativos (estes todos) continuam a ser cruciais na elaboração de sons: desde tubos a um bidão, sacos de plástico e um carrinho de supermercado (pela primeira vez desde 1986, pelos vistos), tudo serve para a construcção de paisagens e texturas auditivas, que por incrível que pareça nunca são barulho só pelo barulho, todas elas têm um propósito, uma evocação, como ficou bem patente na explicação de Blixa sobre as onze (!) partes que constituem a incrível «Zivilisatorisches Missgeschick», que vão desde descrições como “tremideira” até “radiação para o espaço”, tudo num tema de apenas quatro minutos no qual fomos desafiados a identificá-las todas. Mas apesar disso, nos últimos anos essa componente passou a ser mais literalmente isso mesmo – instrumentos, coisas a serem usadas para chegar a um determinado fim, e não um fim neles próprios. Há mais voz, mais melodia, mais espaço, mais silêncio até, é uma atmosfera diferente. Sinistra ainda, talvez até mais sombria do que os tempos desvairados dos revolucionários e selvagens «Kollaps» ou «Halber Mensch», mas marcadamente diferente. E se é gratificante ver como a evolução da vida das pessoas, e estas são pessoas que já passaram quase todas a marca dos 60 anos de idade, tem neste caso efeito directo na sua arte, é óbvio que isso não é visto como um ponto positivo para toda a gente. Por exemplo, um talentoso músico do nosso underground, presente no evento, who shall remain nameless, manifestou o seu desagrado a meio, indo fazer uma pausa no exterior depois do hilariante comentário “isto é demasiado A-ha para o meu gosto“. Lá está, são gostos. Mas para quem “gosta” desta direcção, houve muito, mesmo muito, com que enriquecer a mente e o espírito durante as quase duas horas de actuação na noite da Aula Magna.

Como dissemos, o alinhamento foi igualzinho ao da noite anterior, ao contrário por exemplo das três datas dinamarquesas que abriram a digressão, cujos setlists variaram consideravelmente de noite para noite. Mas como é natural nestas coisas, à medida que as datas se vão somando, as bandas, mesmo as mais veteranas e experientes, vão acertando detalhes, e a fluidez foi muito maior do que na noite anterior, para sorte, desta vez, do público lisboeta. Sem problemas técnicos, sem grandes conflitos entre os músicos (o Blixa lá se “passou” momentaneamente com o técnico de som quando a música não baixou o volume como devia na pausa final de «How Did I Die?», mas foi só isso), foi mesmo só sentar para trás e apreciar. Claro que Bargeld é o epicentro de tudo (mesmo com a imponência, física e sonora, do baixo retumbante do grande Alexander Hacke), um maestro sem batuta, um field commander à maneira de um Michael Gira, por exemplo, e numa imagem que já usámos algumas vezes com frontmen carismáticos, dá a sensação que mesmo sem música, seria interessante ir ao concerto na mesma só para ouvir o senhor contar histórias. O homem é mesmo um storyteller nato, e não foi por acaso que algumas partes de temas originalmente cantadas em alemão foram passadas para um mais universal inglês ao longo do concerto. Mas mesmo só com a conversa entre músicas, só assim muito rapidamente, aprendemos, entre outras coisas (nomeadamente as tais onze partes daquele tema de que já falámos – a expressão “Zivilisatorisches Missgeschick“, que foi traduzida como “civilizational mishap“, ou seja, “right now“, com concordância imediata e ruidosa do público), que a «Tempelhof» foi inspirada por andar no antigo – e sim, cheio de personalidade – aeroporto Tegel, de Berlim, encerrado em 2020, e no panteão de Roma, através de portais. Que o último concerto a que o Blixa assistiu, foi do mestre Leonard Cohen, em 2008. “Way before the pandemic,” como é natural. Que o carrinho de compras provavelmente tem um tracking device, e que o supermercado de onde foi tirado sabe onde eles estão, e anda a seguir a sua trajectória pela Europa fora. Que a «Wedding» não é uma música de casamento, mas sim sobre um distrito a norte de Berlim, e ainda em termos geográficos, que a «Grazer Damm» é sobre a rua onde Blixa cresceu, na capital alemã. E fomos relembrados que, apesar do teor sombrio da tenebrosa «Sonnenbarke», quando a escreveram não faziam idea que o Brexit ia acontecer, e que o Yeltsin ainda mandava na Rússia. Tantas catástrofes ainda por vir.

São curiosidades, e banter, e pequenos pormenores acerca de inspirações, mas a toada do discurso reflecte perfeitamente o feeling da música. Um misto de provocação, de playfulness, de crítica social e política, de surrealismo, de tragicomédia. Poucos temas encapsulam melhor toda a heterogeneidade deste ethos do que «How Did I Die?», que inicialmente, e até pelo álbum onde esteve originalmente incluído, tem como contexto a Primeira Guerra Mundial de forma bastante objectiva, mas que aqui, noutro contexto, pode ser e evocar tantas outras coisas – incluindo a própria banda, como é inevitável associar quando Blixa declama “We didn’t die / We didn’t die / We are back with a different song / We didn’t die / We didn’t die / We’re just singing a different song“. O ambiente lúgubre da canção, com aquele assomo final do “okookookookooskrookookookookoo” e dos guinchos (cada vez mais arrepiantes!) característicos de Blixa, onde se canta “the difference is in the song“, “difference makes the song“, tem um impacto maior e mais simbolicamente ruidoso do que se se tivessem convidado vinte pessoas do público para irem arrear porrada no bidão de plástico com uma moca. É um bom exemplo de “menos é mais”, mas claro que, por vezes, mais é que é mesmo mais, e os Neubauten entendem isso. «Die Befindlichkeit des Landes» dificilmente sairá alguma vez do alinhamento, porque proporciona um ponto alto, em termos de volume, com aquela percussão industrial lancinante, mantendo o impacto emocional (muita mela-mela-mela-mela-melancolia!). E a final, a fechar o segundo e último encore (que teve também um tema novo sobre o qual estamos muito curiosos!), «Redukt», com aquele crescendo a desembocar no rimbombante refrão, que só se pode descrever, muito à metal, como BRUTAL. Não sabemos se aquela rábula da escolha de tema nesse encore era verdadeira ou não, tendo sido sugeridas alternativas como «Sabrina», «Grundstück», «Installation No. 1», «Stella Maris» ou «Perpetuum Mobile» perante vários níveis de reacção do público (tendo em conta que a “escolha” recaiu exactamente sobre o mesmo tema da noite anterior, palpita-nos que não havia assim tanta flexibilidade), tendo mesmo havido um maníaco a gritar “all of them!” (pista: é o tipo que vos escreve neste momento), uma sugestão que Blixa parece ter entretido durante momentos, referindo que saíamos dali às quatro da manhã. Não que muitos se importassem com isso, parece-nos. Que tal metê-las todas, e mais umas do género, na setlist da próxima visita, numa retrospectiva de carreira de três horas? Combinado, Blixa?

FOTOS: Pedro Almeida