EM FOCO: ANZV e o misterioso black metal de«Gallas» [entrevista + streaming]

Há cerca de um ano fomos apresentados a um vídeo, a um novo canal de YouTube e a quatro letras – ANZV. Algures num deserto ou algo similar, uma enigmática figura feminina posa para a lente, quase ocultada por uma veste negra. A música sobe de volume e intensidade; quase no final, ecoa uma voz gutural. Aquela que foi a primeira apresentação deste projecto ao mundo durava apenas 83 segundos. Uns meses depois surgiu o anúncio, por parte da Exorcize Music, que nos notificava em simultâneo da sua ressurreição e fazia uma referência a «Gallas». É assim que se intitula a estreia dos músicos, a que a independente lusa se referia como “uma banda onde os ventos do Norte se fundem com a temática Mesopotâmica através de um black/death Metal que vagueia entre o clássico e o post-black metal”. O artwork do álbum, criado a partir de ilustrações de Inês Morais, foi o passo seguinte na teia de revelações pontuais. A acompanhar, surgiu também o alinhamento de temas, criando expectativa para os dois singles que se seguiriam. «Inane» foi revelado há um mês atrás e, cerca de duas semanas depois, surgiu «Isimud». Em princípios de Setembro, chegava então o disco completo. Antes, o anúncio dos concertos de apresentação – com os Morte Incandescente, nas duas datas, e os Law Of Contagion apenas no Porto.

Por esta altura já se sabe que o quinteto “reúne elementos cujos caminhos se cruzaram ao longo de décadas na cena nacional de black metal”. São eles M. e N. nas guitarras, A. na voz, T. no baixo e E. na bateria. Em declarações exclusivas à LOUD!, M., um dos guitarristas, explica que “ANZV surgiu no final de 2019, após estar desligado uns bons anos da composição. Comecei a compor conforme ia tendo algumas ideias, que inicialmente ficaram guardadas para consumo pessoal. Sempre tive o hábito de gravar coisas para mim. Nessa altura, não tinha ideia de voltar a tocar ao vivo, era apenas por gosto que ia compondo. Como já tinha outro projecto activo, ainda ponderei assumir esses temas para esse projeto já existente, mas ANZV foi crescendo de forma muito distinta e requeria alguma componente visual. A sonoridade é mais envolvente e atmosférica, o próprio conceito começou a tomar uma dimensão mais obscura. Em finais de 2020 surgiu a vontade de trazer ANZV oficialmente a público e fui lançando nas redes sociais pequenos samples, que foram aguçando a curiosidade”.

Hoje percebe-se que os primeiros sons do clip divulgado em 2020 são os mesmos que abrem «Isimud», tema de abertura de um registo que logo evolui para uma toada muito mais violenta. Mesmo assim, o disco revela-se cuidado, aqui e ali melódico, sempre em tom épico, que levanta muita curiosidade sobre como resultará ao vivo. Caso, por exemplo, de «Remnants», faixa onde se notam referências de post black. “O post black metal surge mais por algumas passagens na percussão, por exemplo, porque tem mais influência do rock alternativo do que propriamente do death e do black metal”, refere M. “Para nós é sempre desconfortável quando chega a hora de definir a sonoridade dos temas, essa definição surge da opinião de pessoas próximas a ANZV, que nos foram dando feedback à medida que foram ouvindo temas durante a composição”, confessa o músico. “O death e o black metal identifico de certeza, tudo o resto fico meio à deriva, até porque pouco gosto do post black metal actual”. A realidade dos rótulos é algo que assombra sempre as bandas que iniciam um caminho, percebendo-se bem como as podem afectar.

Outro problema de que os grupos emergentes sofrem é a comparação, apenas porque se aborda um género. No caso dos ANZV, na referência à cultura mesopotâmica, logo emergiu a referência Melechesh. O guitarrista, diz-nos está totalmente à vontade com isso pois está ciente que “se fosse pela mitologia egípcia iam ser os Nile, se fosse pela grega seriam os Rotting Christ e por aí adiante”. As comparações acabam sempre por ser imediatas, mesmo que desprovidas de sentido, como qcontece neste caso. “Bandas cujas estéticas são idênticas, mas incomuns no panorama metal, fazem as pessoas presumirem que se tratam de sons idênticos, o que com ANZV, como já tiveste oportunidade de ouvir, é algo distinto”. Ironizando com a cultura mesopotâmica, podia-se até atirar o nome Marduk, referência a um personagem da mesma, para cima da mesa. No entanto, ainda ninguém o tinha feito e, como aqui não há a parafernália militar, a comparação cai por terra. Mesmo assim, há referências sonoras nórdicas. “Essa ligação surge muito provavelmente pela própria influência que as bandas de black metal nórdico têm em mim”, explica o músico. “Embora não me identifique interiormente com a filosofia de ideologias que algumas defendem, a própria sonoridade e atmosfera sempre me influenciaram na hora de compor. Há muitas bandas que também sabem explorar muito bem esse campo sem caírem no cliché do satanic black metal, recriando verdadeiros hinos à obscuridade tanto na abordagem musical como lírica”.

Para além da componente áudio, a estética visual também se revela importante para o colectivo. M. explica: “ANZV foi crescendo e ganhando identidade própria, sem influência de quem a compõe. Tanto a nível visual como pessoal, é desconexa de ego”. Desta forma, o grupo “ganhou uma identidade própria e desligada de quem a completa, daí não termos qualquer necessidade de estar a divulgar quem está por detrás da mesma. Queremos que as pessoas apreciem a música e toda a estética visual que a envolve”. Para o futuro, a promessa de que irão usar “alguns elementos que vão remeter para uma atmosfera ritualista que é o que ANZV é, uma viagem sensorial que vamos tentar transpor para o público numa aura de obscuridade influenciada pelo Médio Oriente. O foco não é tanto em quem representa ANZV, mas sim como a sua identidade/personalidade contribui para isso”. A experiência e veterania ajudam a que os músicos estejam cientes que Mesopotâmia cruzada com black metal nórdico, somado a referências ao post, seja lenha para o grupo se queimar na fogueira do trvismo. Talvez por isso, M. assume que não estão “minimamente preocupados, convivemos harmoniosamente com músicos, bandas e fãs dos dois mundos”. E, verdade seja dita, «Gallas» necessita que fãs desses dois mundos o ouçam, porque carrega elementos capazes de satisfazer ambos. Com 2023 a chegar ao fim, haverá poucos discos do estilo, dentro das fronteiras nacionais, a realmente motivarem interesse. Este é, sem dúvida, um deles.