HOLOCAUSTO CANIBAL: «Crueza Ferina» | Selfmadegod / Larvae Records, 2022 [review]

Os nichos musicais escolhidos na juventude podem revelar-se perigosas armadilhas no futuro de um grupo. Os músicos, quando jovens, desenvolvem natural atracção por um dado estilo. Na instituição da banda, procuram emular os seus ídolos. Algo correcto e compreensível. Muitas vezes falham passos importantes, ou nem conseguem inserir algo que os diferencie de uma banda de versões, por isso o nicho nem é problemático. Agora, quando crescem e pretendem abranger um público mais vasto, o nicho revela-se uma âncora que prende e pode afundar o navio, retirando a liberdade necessária, entre a tempestade de liberdade criativa. Quando é o músico a crescer, o nicho pode servir de desmotivação, porque obriga a continuar a servir arroz, num momento em que se almeja algo mais. É aí que medram os projectos paralelos, as divergências musicais e tudo o mais que tem na raiz a insatisfação criativa.

Após vinte e cinco anos satisfazendo a sede de grind, sorrindo com os títulos provocativos das músicas e articulando formações, os HOLOCAUSTO CANIBAL conseguem saltar fora do nicho e criar o álbum mais “musical” da sua carreira. Demorou, embora aos 25 anos apenas se possam contrapor seis registo de longa-duração para o grupo. Arriscando, bastante, ser redutor, a escuta dos 82 segundos de «Prenúncios Da Vingança Cavicórnea» podem bem simbolizar o novo trabalho do (agora) quarteto. Está lá o grind, devidamente exponenciado. Há também uma brutalidade plúmbea, própria do granito nortenho, como em «Êxodo Mortuoso», que conta com a colaboração de Bob Vigna, dos IMMOLATION. Existe o groove suficiente para provocar um mosh pit impiedoso. E, como pincelada final na tela, aqueles tambores cruzados na primeira parte do tema. Está lá tudo, nos sítios certos. Há também temas rápidos e impiedosos, e outros onde se respira e provoca, como um dominador que ronda a presa vendada. Neste último caso, aquele pedal a marcar passo em «Campas do Negro Breu».

E a musicalidade, as influências para lá do grind? Basta escutar os primeiros trinta segundos de «Girândolas Da Agonia Profunda», está lá um trecho de música que até muito grupo de metal tradicional ou mesmo hard rock, agradeceria. Ou a guitarra a todo o gás que abre «Quérulo Dos Finados». Ou o gingar punk que percorre «Sortilégio da Perversão». O grupo diz que “a ideia foi fazer um disco para tocar ao vivo”, mas na realidade construíram uma enciclopédia de riffs e ritmos, num trabalho que claramente incorpora as muitas horas em festivais a escutar outros, antes do apocalipse etílico. Liricamente, também aqui há novidades, com uma construção mais interessante e apelativa, ultrapassando o gasto gore, e os manuais extremos de medicina. Tal como na música, nem por isso a lírica deixa de ser mais extrema que antes. A temática das atrocidades sobre animais é sempre actual e encaixa perfeitamente no grupo, bem como no tal nicho de onde apostam sair. Curiosamente, é este o trabalho em que as letras se revelam mais compreensíveis. Com um pé no grind, outro no brutal death, e a cabeça numa miríade de sons, «Crueza Ferina» é uma aposta ganha em todos os quadrantes, musicalmente, criativamente e na forma como os músicos ousam dar um passo bem firme num trilho que se pretende renovado. Aconteceu agora, podia ter corrido mal, mas, afinal “tem de se experimentar, se não se experimentar, não se sabe” como vai ser. [9]