Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: Duas anedotas seiscentistas

Francisco Manuel de Melo e Francisco Rodrigues Lobo foram dois poetas portugueses seiscentistas que além de partilharem o nome serviram de inspiração a chufas e polémicas inventadas pelos seus rivais que quiseram nesses modos menosprezar a importância que já na altura se dava às obras destes insignes literatos no seio da corte e das academias – quanto a estas, a centúria de Seiscentos consolidou a viragem anti-universitária, anti-escolástica e anti-aristotélica, legada pelas italianizantes academias platónicas do século XVI, mas acrescentando pelo menos duas dimensões novas: uma foi a vulgarização de academias de fidalgos e de homens de negócios dedicadas ao estudo das artes ou das ciências – “artes” e “ciências”, esclareça-se, no sentido de serem “técnicas” empiricamente aplicáveis ao desenvolvimento de actividades de pendor manufactureiro – e outra, de especificidade ibérica, foi o surgimento de academias literárias onde se cultivava o sincretismo entre letras espanholas e portuguesas por influência da configuração dual da monarquia peninsular. Como outros autores deste período, D. Francisco Manuel de Melo (que pertenceu à Academia dos Generosos) e Francisco Rodrigues Lobo (pioneiro da emoção e da pena barrocas) escreveram em castelhano e em português.

Uma interessantíssima anedota que se contava sobre o castelhanizante D. Francisco Manuel de Melo relacionava-se com uma presumida desconfiança que D. João IV sustentaria em relação a este fidalgo da casa de Filipe IV de Espanha: segundo o relato, o Restaurador tencionara testar a lealdade do autor de Cartas Familiares pedindo à sua apaniguada Condessa de Villa Nova que convidasse o letrado a integrar uma quimérica conspiração contra a Coroa; assim, D. Francisco Manuel de Melo, mais por tolo galanteio que por insaciável sedição, anuíra ao objectivo da conversação sem conceber que o próprio D. João IV se desgostava, ouvindo tudo atrás de um pano de armar. A partir daqui, a narrativa arqueia ascendente para as alturas do insólito, dando conta de uma rotina de D. Luísa de Gusmão, que gostaria de ocultar-se numa câmara dos seus aposentos para aplicar uma máscara facial de beleza, feita de alvaiade e carmina; ora, dando para a janela do quartinho situava-se um mastro pelo qual se habituara a amarinhar um macaco doméstico para ver a rainha a maquilhar-se – um dia este macaco logrou libertar-se da corrente e atirou-se aos unguentos reais para em seguida apresentar-se maquiado e vaidoso pelos salões do paço. Despeitada, a rainha mandou matá-lo e é aqui que as linhas vêm atar-se de novo ao desventurado D. Francisco Manuel de Melo: por coincidência, uma sua prima, D. Maria de Portugal, foi nesse momento ter com a rainha para pedir clemência para o vate – mas a soberana persuadida que se estaria a pedir pela vida do macaco insolente retorquiu-lhe que não se pedisse por ele, pois era feíssimo e tinha de morrer. A miseranda parente do nosso poeta foi de imediato fulminada por um forte desmaio. Não obstante a veracidade total ou parcial da anedota, D. Francisco Manuel de Melo regressou à corte depois da morte de D. João IV, e depois de um longo período de exílio no Brasil, para servir de embaixador da regente D. Luísa de Gusmão em Roma.

A vida do poeta Francisco Rodrigues Lobo desfechou com duas tragédias: uma foi ter morrido afogado no rio Tejo, quando se virou a embarcação que o trazia a Lisboa, vinda de Santarém; a outra foi essa morte sem galas ter sido escarnecida num soneto de D. Tomás de Noronha – que ainda por cima era seu amigo. O soneto é este: “Façam as Musas tristes e enlutadas / da Fonte Cabalina um mijadeiro, / e Baccho, aquelle grande taverneiro, / encha as pipas que tem mais atestadas. / Apollo rache as gaitas afinadas / e jure não tornar a ser gaiteiro. / Venus meta-se em Chipre n’um mosteiro, / desfaça o Rapaz setas hervadas. / Sinta o Tejo o que fez, e de orvalhado, / faça um capuz e chore eternamente / a morte de Lereno desastrado. / Prestes, Lereno, a morte impaciente / te accometteu; mas dizem, que queimado / havias de morrer naturalmente.”

O significado destes versos – críptico para o leitor contemporâneo – é o de que por desastre Lereno (gentílico de Leiria inventado por Francisco Rodrigues Lobo e por ele empregue como nome literário) calhou a morrer afogado quando na óptica de Noronha aquilo que seria natural para o autor de A Corte na Aldeia – que era filho de cristãos-novos (e, provavelmente, suspeito de judaizar) – era o relaxe pelo Santo Ofício ao braço secular para morrer queimado.

Curiosamente, o autógrafo deste soneto (cuja redacção chegou a duvidar-se) foi descoberto na biblioteca do palácio real da Ajuda pelo médico e higienista Ricardo Jorge, fundador do Instituto Nacional de Saúde. Idiossincrasias de um tempo em que alguns poetas eram doentios e de um tempo em que alguns epidemiologistas tinham interesse por poesia.