Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: História, zombies e deicídio

A primeira viagem que o escritor inglês Robert Southey fez a Portugal, de Janeiro a Abril de 1796, extinguiu os planos que ele fabricara dois anos antes com o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge de fundarem uma comunidade utópica à beira do rio Susquehanna, no estado americano da Pensilvânia. Estes literatos do período Romântico queriam inaugurar a Pantisocracia: colectividade socialista-utópica, cujo nome formularam a partir da palavra em grego Pan e do neologismo Isocracia, almejando assim um significado de “o governo do Igual para todos”. Além de parceiros, Southey e Coleridge eram cunhados, porque casaram, respectivamente, com Edith e Sara Fricker; duas irmãs envolvidas no projecto pantisocrático e sobre quem o poeta inglês Percy Bysshe Shelley questionava qual seria a mais «estúpida» (decidir-se-ia por Sara). Convencidos de que a Revolução Americana inaugurara uma nova Era Revolucionária e impressionados pelo proselitismo da Primeira República Francesa, os dois radicais e um punhado de associados foram, todavia, confrontados no seu entusiasmo com diversos problemas de financiamento e também de localizações alternativas que atrasaram o desenvolvimento do projecto; mas só no final de 1795, quando Southey, com vinte e um anos de idade, foi obrigado pela mãe e pelo tio – que era capelão dos ingleses em Lisboa – a partir num tirocínio para a capital portuguesa, é que a Pantisocracia caiu em interrupção permanente.

Desgostando da mentalidade «filistina» da comunidade inglesa de Lisboa (que descreveu como sendo uma «união do espírito capitalista com os frívolos divertimentos da boa-vida») e exasperado pela «superstição» dos portugueses, Southey refugiou-se na «admirável» biblioteca do tio. Nessa óptica, aproximava-se do sentimento antibritânico alimentado pelo esteta inglês William Beckford – os dois compatriotas, aliás, poderiam ter-se encontrado em Lisboa nesses dias, caso se movessem nos mesmos círculos sociais; talvez pudessem vislumbrar-se de relance em Sintra, quando Southey aí passou uns dias, em Abril, na casa de Verão do seu tio, mas Beckford não estava nessa altura no seu palacete neogótico de Monserrate (neogótico antes de essa propriedade, já arruinada, ser em 1856 reconstruída em estilo mourisco pelo homem de negócios inglês Francis Cook, 1.º visconde de Monserrate). Porém, o feitiço de Sintra e também de Lisboa só se soltou na mente de Southey quando este regressou a Inglaterra, às suas «desejadas» chaminés de Bristol: rapidamente desabituado do clima inglês por esse breve estágio meridional, o poeta surpreendeu-se de passar a sonhar com a luz de Lisboa e com o cenário de Sintra. Na verdade, não repousou enquanto não voltou.

Nesses poucos meses passados em Lisboa tinha aprendido a falar e a ler em português; e quando finalmente regressou com Edith a Portugal, em Abril de 1800, encetou de imediato a escrita de um trabalho cujo paradeiro continua, infelizmente, desconhecido: uma história de Portugal, que deveria ser monumental já que dela extraiu material suficiente para perfazer três grossos volumes que publicou entre 1810 e 1819 sob o título de História do Brasil – foi no terceiro volume dessa obra que introduziu no léxico inglês a palavra africana “zombi” (aludindo ao nome pelo qual ficou conhecido nas últimas décadas do século XVII o primeiro governante do quilombo dos Palmares).

A vontade de melhor conhecer Portugal para escrever convenientemente a sua história levou-o a visitar vários lugares, como os mosteiros de Alcobaça, da Batalha, o de Santa Cruz em Coimbra, assim como a fazer uma grande viagem a sul do Tejo, pelo Alentejo e pelo Algarve. Em Junho de 1801, contudo, a conjuntura internacional fê-lo voltar com Edith para Inglaterra; gorando-se nesse modo o projecto de visitar o norte do país. Tradutor e divulgador de Camões em Inglaterra, contribuiu para a lusofilia que entusiasmou as letras britânicas na primeira metade de Oitocentos. A convite do amigo e cunhado Coleridge, foi viver para a pluviosa vila de Kenswick, no condado de Worcestershire, cuja paisagem lacustre e montanhosa passou a ser uma espécie de consolo pela memória de Sintra que para ele continuava a ser «o local mais abençoado da parte habitada do globo».

Foi nessa fase da sua vida que o ex-revolucionário, utopista radical e poeta laureado Southey escreveu a sua obra mais conhecida, mas que pouquíssimo contribuiu para celebrizá-lo, porque entrou no fabulário com o título Caracóis de Ouro e os Três Ursos. A versão original escrita por Southey em 1837 intitula-se, somente, A História dos Três Ursos e a protagonista não é uma menina de cabelos louros, mas uma velha «desonesta» que foge a correr da casa dos ursos quando estes regressam para tomar o pequeno-almoço e descobrem-na a dormir na cama do mais pequeno: nesse momento, Southey dá aos leitores um final de escolha múltipla em que a velha ou morre na fuga «de pescoço partido» ou é «apanhada pela polícia e levada para a Casa de Correcção» – destinos aziagos para uma personagem em busca de comida e abrigo, imaginados por um autor que, outrora, fizera parte de um grupo que defendia a abolição da propriedade privada.

Conclua-se com o facto de Southey ter inventado a palavra deicídio (deicide, no original) na segunda parte de Madoc, longo poema épico que começara a escrever com o objectivo de angariar receitas para o projecto utópico da Pantisocracia, mas que só publicou em 1805.

Robert Southey