Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: Quando o Diabo andou à solta

Na noite de 8 de Fevereiro de 1855, um espesso nevão cobriu o condado de Devon, no sul de Inglaterra — diz-se que o frio foi tão forte que congelou o rio Exe, aprisionando as aves aquáticas que aí dormiam. Todavia, os indivíduos não acharam que a súbita vaga de frio provocasse mais calafrios que umas insólitas pegadas fissípedes descobertas nessa manhã: com mais ou menos dez centímetros de comprimento e sete de largura, as pegadas misteriosas atravessavam os territórios de cinco paróquias, passando por cima de muros, fardos de palha e telhados. A semelhança com vulgares pegadas produzidas por cascos fendidos era evidente, mas o modo como se dispunham, em fila única, parecia indicar que a criatura caminhara em duas pernas — como um ser humano. As gentes locais não pensaram duas vezes: só podiam ser as pegadas do Diabo, que andara à solta durante a noite.

Centenas de indivíduos viram as pegadas, cuja trilha começava num jardim da cidade de Totnes e terminava num campo da aldeia de Littleham: ou seja, de um lado ao outro do condado. Num trecho desse itinerário, o andarilho misterioso passou dentro de um esgoto, deixando pegadas que mais pareciam marcadas a ferros-quentes — iguais às que deixou na porta da igreja da aldeia de Woodbury. As redacções dos jornais foram invadidas por uma enchente de cartas, relatando avistamentos, esboços das pegadas e sugestões de múltiplos culpados: desde gatos, raposas, lontras, patos e até a hipótese de ter sido um burro com um casco partido. O naturalista Richard Owen — que não se dando por satisfeito por catorze anos antes ter inventado o nome “dinossauro” — escreveu uma carta ao semanário The Illustrated London News especulando que as pegadas tinham sido feitas por um texugo: mustelídeo, que, dizia, quando despertava esfomeado da hibernação podia caminhar nas patas traseiras. Outra hipótese, sugerida pelo Reverendo Musgrave da aldeia de Widecombe, acrescentou que as marcas poderiam ter sido feitas por um casal de cangurus fugitivos do jardim zoológico particular de um tal Sr. Fische, residente na cidade costeira de Sidmouth – mas pouco tempo depois admitiu ter inventado essa tese para sossegar os seus paroquianos, aterrorizados pela ideia de andar o Diabo à solta.

Cinco anos antes de aparecerem essas enigmáticas pegadas, já uma formação rochosa do mesmo condado, chamada Dewerstone Rock, na charneca de Dartmoor, fora associada de modo semelhante às andanças do Diabo: o semanário Notes and Queries tinha relatado a descoberta de um rasto que parecia feito por uma mão humana e um casco fendido galgando a neve precipitada nas fragas. Histórias deste tipo lembram algumas que também circulam em Portugal; como a da Pedra do Diabo, situada no passeio que vai de Ponte de Lima a Nossa Senhora da Guia e na qual as gentes vêm as marcas das unhas do Diabo numa concavidade. Por outro lado, segundo o artigo do Notes and Queries, a charneca de Dartmoor era assombrada por um cão negro — sem cabeça.

Nos folclores de muitas regiões, um grande cão preto costuma ser um avatar do Diabo. Em 2011, os My Dying Bride, banda inglesa de doom metal, editaram um EP intitulado The Barghest O’ Whitby, em que se exploram folclóricos avistamentos de grandes cães pretos, assombrando as charnecas do Yorkshire, para criar uma inédita história de vingança. Outra história de vingança protagonizada numa charneca por um grande cão preto fora publicada pela primeira vez em folhetim, em 1901, na revista The Strand: escrita por Arthur Conan Doyle e intitulada The Hound of the Baskervilles é, provavelmente, uma das mais influentes histórias de Sherlock Holmes — embora, aí, o diabo se ocultasse em figura de gente para desembestar a trela.

 Alguns relatos portugueses, por exemplo, contam como esse tipo folclórico e ominoso de cão-diabo, mastim ou molosso, aparece de noite às bruxas que o procuram: fareja-as nos cemitérios e nas encruzilhadas e pergunta-lhes «que querem?», ao que estas respondem com aquilo que querem que o Diabo lhes faça; em seguida, ele pergunta «que me dás?» e aí as bruxas têm de dizer «dou-te uma coisa» — sem especificá-la, porque aquilo que o Diabo quer são almas e qualquer deslize lhe servirá de pretexto para arrebanhá-las. Na verdade, na tradição popular, o Diabo, seja qual for o seu disfarce, é quase sempre vítima da sua ganância.