Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: Sobre o garum

No decurso de investigações arqueológicas realizadas em meados dos anos noventa do século passado no velho Convento de Nossa Senhora de Aracoeli, em Alcácer do Sal, reuniu-se um valioso espólio de figuras feitas de bronze, datadas dos séculos V e IV a.C.: são estilizações de humanos, animais (vários bois, um burro e um cão) e muitas personagens que foram apelidadas de Orantes, por mostrarem uma postura suplicante; curiosamente apresentam-se com grandes falos erectos. Uma das razões pelas quais os povos antigos deixaram por aqui significativos vestígios das suas viagens foi a existência de salinas por toda a linha dos estuários do Tejo e do Sado (como na referida cidade de Alcácer do Sal). É provável que tenham sido navegadores fenícios a inaugurar a indústria de salga de peixe no esteiro do Tejo, como comprovam achados arqueológicos de ânforas púnicas datadas dos séculos IV e III a.C.

Nesses tempos antigos, a geografia de Lisboa era diferente daquilo que pode ser observado hoje, porque o oceano cobria uma larga extensão daquilo que é a costa actual do país e em alguns locais recuou tardiamente, a partir do século XV. À borda das cotas íngremes pelas quais serpenteia o popular Eléctrico 28, o rio Tejo carregadíssimo de salinidade atlântica desaguava num golfo que penetrava pela parcela do que é hoje a Baixa Pombalina e reunia-se com duas ribeiras que corriam pelos vales onde mais tarde foram abertas as avenidas da Liberdade e Almirante Reis. A toponímia tem boa memória e até há pouco tempo, mais cem anos, menos cem anos, o Rossio e seus terrenos cimeiros ainda eram apelidados de Valverde ou Hortas do Valverde. A contextura arenosa do solo lisboeta prossegue para Norte, ganhando, sucessivamente, uma composição argilosa que desde cedo foi aproveitada para a manufactura de cerâmicas variadas; a boa memória da toponímia não esquece esses pucareiros de outrora, como é legítimo retirar-se, entre outros, dos nomes Olaias, Forno do Tijolo ou Telheiras. Esses ofícios extinguiram-se durante um período indeterminado até serem recuperados pelos romanos, a partir do século I a.C., iniciando-se a indústria das conservas e molhos de peixe que foi a jóia de Lisboa até meados do século V. A diversidade de produtos chegou até nós em nomes cuja interpretação é o pesadelo dos etimologistas: muria, allec, liquamen, e, em destaque, garum.

Garum: nome que bem podia ser um som ronronado por um gato a esfregar-se nos tornozelos do dono – que produto foi este, confeccionado em cetárias revestidas de opus signinum (argamassa feita de areia, cal e calcário britado) de cuja existência se conservam exemplares no subsolo dos nossos edifícios? Desde o início que o garum se cifrou como produto gourmet: o principal molho salgado de peixe. Os romanos adoravam iguarias extravagantes e não poupavam despesas para confeccioná-las – até inventaram uma palavra para isso: abligurire, que significa “gastar rios de dinheiro em comes-e-bebes”. Também adoravam sal: tanto que até salgavam o vinho com um molho salgado chamado defrutum. O que se esconde detrás desta obsessão com molhos salgados? A resposta reside no facto de que não usavam pedrinhas de sal para cozinhar ou temperar: salgavam a comida com os molhos. Molhos salgados de peixe foram, em simultâneo, condimentos e remédios, porque os físicos achavam que continham todas as propriedades medicinais do sal, mais as do peixe. Tomava-se garum contra a ciática, contra as enxaquecas e até contra problemas respiratórios ainda por diagnosticar convenientemente, como asma e tuberculose. O garum de Lisboa era feito de carapau e, principalmente, de sardinha: conhece-se esse facto pelas análises feitas às espinhas e aos resíduos do preparado encontrados nas cetárias e nas ânforas. O garum era produzido como se fazem pickles: os restos que sobravam depois de preparar-se as conservas de peixe salgado, como as entranhas, as caudas e as cabeças, eram colocados em tanques (as cetárias) e cobertos com uma grossa camada de sal; sobre esta, era disposta outra camada de vísceras, mais outra de sal, repetindo-se o processo até encher o tanque. No fim, prensava-se as camadas com uma pesada laje de pedra; depois de fermentada, passados alguns dias, essa mistura de peixe e sal era filtrada e o molho resultante era vertido em ânforas largas e bojudas (ao contrário das de transporte de azeite e vinho, que eram estreitas). Em grego, o nome deste recipiente significa “com dois transportadores”(os “transportadores”, neste caso, são as duas pegas laterais): fabricadas para serem usadas apenas uma vez foram a louça descartável da época (com mais de trinta metros de altura, o verdejante Monte Testaccio, em Roma, parece ser uma elevação natural, mas é artificial, formado por sedimentos sucessivos de cacos de mais de cinquenta milhões de ânforas – terra tornada barro, tornado terra).

A tradição do garum persiste no inócuo ketchup: no século XVII, os ingleses popularizaram uma reinvenção do garum romano, requintando um molho feito de anchovas e de sal; chamaram-lhe ketchup, nome que provém do molho de peixe indonésio kecap ikan (kecap pronuncia-se ketchup). Nos finais do século XVIII, inventou-se na América um ketchup feito de tomate: nessa altura, ainda não era doce como o de hoje, mas de um sabor salgado, que deveria ser semelhante ao das salmouras olisiponenses.