SWR — BARROSELAS METALFEST | Dia 2 | 29.04.2023 [reportagem]

Depois de um périplo entusiasmante e de um primeiro dia repleto de acção, o Dia 2 do SWR – BARROSELAS METALFEST de 2023 apresentava-se, no papel pelo menos, como o globalmente menos apelativo de toda a empreitada. Fazendo o balanço final, terá sido de facto o menos equilibrado, mas não deixou de nos proporcionar várias pérolas que decerto figurarão no já avantajado panteão do festival no futuro. Note-se por exemplo que dois dos nossos escribas pensaram, em ocasiões totalmente separadas, no Trey Azagthoth como referência para os concertos que estavam a ver. O nível está alto!

Destaque: SUFFERING HOUR

foto: Estefânia Silva

Os SUFFERING HOUR não eram os headliners, nem sequer no palco principal tocaram, mas por entre várias conversas tidas nos dias anteriores – e particularmente conversas com outros músicos da cena black/death, o que não é coincidência – ficou bem patente que a actuação deste trio do Minnesota estava a suscitar enorme curiosidade. E por mais altas que as expectativas fossem, e verdade seja dita, para quem conhece bem os seus dois álbuns (em particular o último «The Cyclic Reckoning» de 2021), elas estavam bem lá em cima, foram inquestionavelmente ultrapassadas pela performance mirabolante dos norte-americanos. Qualquer dúvida que houvesse em relação à capacidade de reproduzirem aquele som dissonante, quase psicadélico, que atingem em estúdio, e que até já lhes granjeou o epíteto de “avant-garde” na descrição daquilo que fazem, ficaram imediatamente dissipadas nos primeiros minutos de «Obscuration», o labiríntico tema de abertura habitual nos seus concertos. O que mais fascina, no entanto, é a maneira como são capazes – e sem desprimor para os outros, falamos do guitarrista YhA, aka Josh Raiken, em particular – de debitar malabarismos insondáveis pejados de efeitos alienígenas, ao ponto de ser fascinante ficar só a olhar para os movimentos das mãos do homem, sem nunca descurar o sentido de canção, e a brutalidade e escuridão inerentes ao estilo que praticam. Make no mistake, isto é black/death bruto e obscuro, e ao contrário do que é habitual, a psicadelia e o progressivismo em que banham a sua música só aumenta esse feeling de intensidade demoníaca, de algo estar “errado”, de dissonância quase assustadora e profundamente hipnótica. À medida que os Suffering Hour torceram e distorceram limites e convenções de géneros neste concerto extraordinário, passaram-nos pela cabeça imagens alucinantes do Trey Azagthoth a tocar nos Akercocke ou dos Voivod a reinterpretarem malhas dos Blasphemy, e perguntas como “porque é que esta gente não chegou ainda – ou ultrapassou – o patamar de popularidade dos Blood Incantation?“. Foi mesmo bom a esse ponto. [J.C.S.]


Destaque (menção honrosa): SADISTIC INTENT

foto: Estefânia Silva

Garantir a presença nesta edição de uma banda underground de death metal que raramente faz concertos, como é o caso dos SADISTIC INTENT, foi certamente uma das grandes vitórias dos irmãos Veiga (e companhia) em 2023. Headliners deste segundo dia de festival, ali estavam, e ali andaram no dia seguinte, vindos de Los Angeles, na Califórnia. Bay Cortez no baixo e voz, Rick Cortez na guitarra, Ernesto Bueno na guitarra e Arthur Mendiola na bateria subiram ao palco e, dúvidas restassem, logo nos primeiros momentos tornaram claro porque são uma banda tão respeitada e apreciada entre a comunidade da música extrema. Verdade seja dita, é realmente difícil descrever aquilo a que assistimos sem recorrer a superlativos exageradas, por isso o mais justo será dizer simplesmente que toda a atmosfera malévola que criaram no palco com os seus temas viciosos foi, além de maravilhosamente arrepiante, de gelar o sangue. Com visual a preceito, muito cabedal negro, rebites, pentagramas e cruzes invertidas penduradas nos pescoços (a lembrar os Slayer por alturas do «Show No Mercy»), os músicos – três dos quais chegaram a acompanhar a lenda Jeff Becerra nos ainda mais lendários Possessed há uns anos atrás – revelaram uma coesão impressonante na forma como atacaram sem piedade temas como «Conflict Within», «Lurking Terror», «Asphyxiation», «Lurking Terror», «Untimely End», «Condemned In Misery», «Funerals Obscure» ou «Dark Predictions». E sim, não há aqui truques técnicos, nem cénicos, não há bells and whistles, mas com as canções a garantirem headbanging massivo e o som potente a permitir que fizessem o seu trabalho sem esforço e vaporizassem o ar com morbidez, conseguiram assinar uma prestação tão eficaz, tão maligna e tão esmagadora, tão “a cara” dos Veigas e de todo o SWR, que só pode ser recordada como uma combinação infernal e imbatível para quem queria, de facto, ter uma noite profana de OSDM. [J.M.R.]


Surpresa: Sahg

foto: Estefânia Silva

A maior parte dos veteranos certamente lembrar-se-á de quando os SAHG apareceram na cena, basicamente sob a idea de “malta do BM norueguês a tocar malhas de doom à 70s“. Com o passar do tempo, os mais “famosos” foram saindo da formação (até o Einar Selvik, actualmente uma estrela nos Wardruna, fez parte deste projecto como baterista original!), deixando o fundador, o ex-Manngard Olav Iversen, como esteio principal de um trio estável há bastante tempo com Tony Vetaas no baixo e Mads Lilletvedt na bateria. Quase nos esquecemos deles até «Born Demon» ter quebrado um silêncio de seis anos em 2022, e seria apenas a qualidade interessante desse álbum, uma viragem mais para o heavy metal do que propriamente para o doom, que ainda dava algum entusiasmo para testemunhar a primeira passagem da banda por Portugal, no palco Arena de Barroselas – e foi precisamente por aí que conquistaram todos os que encheram o espaço exterior para os ouvir. Empenhados, com uma garra assinalável e com Iversen numa forma vocal notável, deram um grande concerto de heavy metal, sem tirar nem pôr. Punho no ar, temas maioritariamente tirados desse último trabalho, guerreiros e épicos q.b., a fazer lembrar uns Grand Magus do seu auge, com alguns malhões a revelarem-se como futuros esteios dos alinhamentos, a gigantesca «Destroyer Of The Earth» à cabeça. Com o benefício acrescido de cortarem com a inevitavelmente cansativa sequência de extremidade black/death/grind que pautou a maior parte do festival, os Sahg foram uma lufada de ar fresco sob todos os sentidos. Por nós, voltavam já para o ano! [J.C.S.]


Surpresa (menção honrosa): MORTIFERUM

foto: Estefânia Silva

Assim que soaram as primeiras notas de «Eternal Procession», fomos atirados para o abismo, com este a olhar-nos de volta. Para nos cingirmos a referências, entrámos numa ampla e reverberante caverna de death/doom onde ecoava o poder ominoso de «Lost Paradise» e «Gothic», misturado com algo das guitarras de Trey Azagthoth nos Morbid Angel e o poder avassalador dos Bolt Thrower. Isto equivale a dizer que os Mortiferum não são propriamente pioneiros na mistura do doom e do death metal, mas é raro ouvir-se isso com uma mistura alquímica tão perfeitamente equilibrada. Não só porque o fazem com elegância, mas também porque sabem onde e quando colocar cada um deles, com grande facilidade e bom gosto. Como se o concerto tivesse sido uma tese de doutoramento, um compêndio académico dos feitos acumulados dentro do género. Ora fomos esmagados por uma instrumentação lenta e assombrosa, ora, com timing perfeito, surgia uma parede de riffs mais rápidos e brutais e uma bateria absolutamente implacável. Aliás, Jullian Rhea foi o baterista que teve a melhor prestação em todo o festival. Espartano, poderoso, cerebral no controlo das dinâmicas dos restantes músicos e, sempre sóbrio, não deixou de ser tecnicamente exuberante. Já os riffs de Chase Slaker e Max Bowman, são tão simples e equilibrados, como viciantes. Soaram siameses nas harmonizações de trítonos ou em intervalos de terceiras e quintas, obrigatórios no death/doom. No final, todas as variações rítmicas e melódicas soaram orgânicas e terríficas. Um dos melhores concertos que já vimos em Barroselas. [N.]



Surpresa (menção honrosa): ADRIFT

foto: Estefânia Silva

Que não nos interpretem mal – esta categoria das “surpresas” não quer dizer que estávamos à espera que estas bandas fossem horríveis, ou que não as conhecessemos antes. O caso dos ADRIFT é paradigmático nesta avaliação, já que a banda madrilena é nossa “velha conhecida”, com mais de vinte anos nestas andanças e vários cruzamentos com a cena nacional. Respeitadíssimos no país vizinho, eles que surgiram no auge do pós-metal Neurosiano, e continuam a evoluir e a debitar peso de valor. Mal comparado, e disputando esse título com uns Orthodox, são um bocado os Process Of Guilt espanhóis. Não tendo nenhum lançamento especialmente recente (o último «Pure» já data de 2019, e têm um tema num split 7″ com os Mondo Infiel de 2021) e destoando bastante do cartaz à sua volta, tínhamos algumas dúvidas sobre a forma como iriam encaixar no alinhamento deste dia, mas fizeram-no de forma naturalíssima, e sem contemplações – foi à porrada que ganharam o seu espaço. Terá sido eventualmente o concerto mais pesado que já assistimos do quarteto espanhol, que se borrifaram completamente no black e death e grind que tinham à sua volta e mostraram que malhões como «Pure» ou a grande «Berzocana’s Bells» do já longínquo «Monolito» esmagam qualquer um, em qualquer lado. Estilisticamente diferentes do resto, sim, mas o resultado foi exactamente o mesmo – o massacre total dos nossos ouvidos. [J.C.S.]


Produto nacional: BAS ROTTEN

foto: Estefânia Silva

Era amplo o sorriso no rosto do Ricardo Veiga quando me pediu o copo vazio, para um refill. No regresso, ao entregar-me o copo cheio, dizia embevecido: “É por isto que vale a pena fazer esta merda, ver os putos a curtirem, felizes.” Acrescentei que, quando éramos nós os putos e tínhamos bandas, tocávamos como marretas ineptos, que teríamos a mesma paixão, mas menos talento. O concerto que assistíamos era o dos BAS ROTTEN, mesmo na cara do Arena Stage. Foi um festão, de facto. Um concerto que acabou por fazer o retrato de uma geração de músicos que tem promovido uma sub-cena que nunca fora muito explorada no nosso underground: aquele lodaçal feito de punk, crust, hardcore e grind. Um paraíso sónico para quem molha o bico com Napalm Death, Brutal Truth, Nailbomb, Discharge ou Iron Monkey, e muitos outros. Mas oferecido por músicos que, ainda que preservem essas referências, são capazes de as extrapolar e revigorá-las com o seu cunho pessoal. Bom, supõe-se que é isso uma cena, na sua verdadeira acepção. O aclamadíssimo «Surge» foi o epicentro de tudo isto, tocado praticamente de forma integral e na respectiva ordem de alinhamento. Com o seu frontman ausente (na Alemanha), foi João Alves Coelho (Don’t Disturb My Circles/BØW) a assumir a frente de palco, esticando as cordas vocais com impressionante agressividade e uma entrega formidável, bem entrosado com a banda e deixando-nos a ponderar se não poderá tornar-se uma solução permanente. «The Blow», «Dissociation», «Prime Cuts», «Violence», «Worth», «Follow», «Primate», «Spent», «Burnout» e «Self» formaram a primeira parte do concerto. Nem sempre dono de um som equilibrado nas frequências graves (poder e groove) e nas médias/altas (articulação e ataque), o PA do palco secundário do SWR suou com a sova que levou da amplificação, sem quaisquer compromissos de overdrive. Uma pequena nota para a imponência sónica do baixista Rui Conceição, com um rig Ashdown/Ampeg ligado ao seu Yamaha BB (um algo raro 415). Já que falamos de amps, por baixo do 6505 de João Preto, uma orgulhosa bandeira ANTIFA oscilava com os estouros da coluna. São as pequenas coisas… A segunda metade do concerto, digamos assim, iniciou com a subida de Sofia Loureiro (Vaee Solis/Pledge) para partilhar as vociferações anti-establishment com o João, através de «Surge» e da sua orelhuda jarda de riffs thrash, com a agressiva estridência da Sofia a cair-lhe que nem ginjas. Na seguinte «Safe», João fica novamente só. Em disco, talvez seja o tema mais lento/contemplativo dos Bas Rotten (claro, dentro dos padrões da banda), mas neste concerto tudo soou com velocidade e intensidade tresloucada, uma violenta barragem socos nas ventas, acompanhados pela rebaldaria mosh em frente do palco, e quase sem dar espaço a perceber o rebuliço que sucedia no palco. Por exemplo, logo em «Behold» assumiu também as vozes Bruno Gasolizna (Nagasaki Sunrise) e depois, em «Yellow», foi a vez do Pedro Nihil (Manferior) ocupar o banco atrás do drum kit. Esta coisa de convidados consecutivos em palco, invariavelmente dá merda, mas este concerto foi uma das excepções à regra, com cada músico a surgir em palco sem vedetismo e atitudes de cagança. Com os assistentes de palco obrigados a trabalho extra de porreirismo e competência técnica, só se davam pelas mudanças quando se viam as caras. E, julgando o pandemónio do público em frente do palco, muita malta nem deu por nada. Ou seja, os Bas Rotten e a atitude dos músicos convidados promoveram uma actuação orgânica e homogénea. Não faço puto de quantos ensaios estiveram por detrás disto (e se calhar é melhor não saber), mas foi bom para cacete. Até ao fim, Pepper Anarki (Misantropia) veio cantar «Thrive», ouviu-se «Choice» (a versão que os Bas Rotten gravaram para o DOOM Bastards, disco tributo às lendas do crust punk) e ainda «Machine», com a voz de Kisto (Dokuga), a malha que fecha «Surge», um álbum que começa a ser curto para o estatuto que a banda tem conquistado. Com meio mundo em delírio, em frente e em cima do palco, a versão dos Carpenter Brut de «Maniac» espalhou uma febril e eufórica nostalgia 80’s pelo recinto que prenunciou o que viria a suceder nas últimas horas do SWR 23. [N.]


Produto Nacional (menção honrosa): WANDERER

foto: Estefânia Silva

Com tanto grunhido, guincho e urro, ouvir aquele gritinho agudo a pontuar as frases de André Ribeiro, foi já de si um bálsamo. Que o gritinho seja o típico do thrash/speed dos 80s, só ajudou mais à festa. Uma das opiniões quase unânimes no final do SWR ’23, e praticamente uma das únicas “críticas” que se conseguiu erguer ao festival, é que faltou algum heavy metal mais tradicional, uma vertente que, apesar da toada extrema que o SWR sempre teve, sempre esteve bem representada em quase todas as edições anteriores. Quis o destino que desta vez calhassem poucas, portanto agarrámo-nos ao que tínhamos – ainda bem que o que tínhamos não só era de valor, como até era nacional. Os portuenses WANDERER armaram um festim no principal Abyss, todo ele a tresandar a 1983. Sinceramente, até faz confusão que esta banda, apesar de formada há mais de uma década e de já acumular alguma experiência (até com uma digressão norte-americana já na bagagem), ainda só tenha uma demo, um EP e um longa-duração no seu catálogo, tal é a mestria com que dominam o estilo. Não inventam nada, claro, mas também ninguém lhes pede isso. O campo onde se mexem está bem definido, e o que se exige é competência, velocidade e malhas – e os Wanderer têm-nas a rodos. E ainda adicionam até algum virtuosismo à questão. Com precisão, feeling, melodias orelhudas e cavalgadas constantes, inspiraram movimento com fartura à frente de palco, e mostraram que são um valor seguro para voltar a chamar em edições futuras. [J.C.S.]


Desilusão: HORNA

Estes finlandeses já por cá tinham passado num longínquo Caos Emergente. Lembram-se desse festim de deboche em Recarei? Há quem se lembre e relembre, entre dois dedos de conversa e uma cerveja com um dos organizadores de um evento que, como tantos outros nesta cena, acabou por se desvanecer. Mas foquemo-nos nos Horna. Nessa altura, entraram em cena como um grupo realmente perigoso; quem lá esteve (eu!), recorda um ambiente perigoso no ar, como se a coisa fosse dar cagada a qualquer momento. Hoje, conhecemos-lhes os esqueletos no armário e, na verdade, com a passagem dos anos, da dupla de bandas de Shatraug, os Sargeist e os Horna, estes últimos foram-se estabelecendo como os menos apelativos. Os dois estavam agendados para tocar no SWR deste ano, mas no final ficámos só com o elo mais fraco. Sabemos que estavam fãs dentro do recinto e que, no final, estavam maravilhados. Nós vimos, literalmente, um concerto diferente – e sim, vale o que vale. Vimos uma banda que subiu ao palco com as suas pinturas faciais pálidas e roupas ensanguentadas, mas que não conseguiu passar o ambiente sombrio que se pretende. Talvez por estarem a tocar num palco tão grande como o Abyss, mostraram as suas fragilidades e limitaram-se a debitar, numa espécie de piloto-automático, temas de black metal sensaborão e insípido. Certamente que teria sido diferente vê-los num palco mais pequeno – ou numa cave qualquer, iluminados só pelas luz das velas –, mas também não seria isso a fazer-nos esquecer que tudo soa muito previsível – e até as tentativas de invocar Atilla Csihar pareceram forçadas. Ninguém lhes retira o mérito da consistência, mas é só isso mesmo que lhes vale. Nesta noite, com os Horna em Barroselas, infelizmente Satanás não conseguiu ser patrão.  [J.M.R.]