TEMA A TEMA: Filii Nigrantium Infernalium – «Hóstia»

Foto: Estefânia Silva

Os Filii Nigrantium Infernalium, pela pessoa do seu vocalista/guitarrista, o impagável Belathauzer, e do seu baixista Helregni, têm uma prenda de valor incalculável para os seus fãs e para os leitores da LOUD!, duas demografias que esperamos sejam bastante semelhantes. São eles os protagonistas desta estreia de sonho da nossa nova rubrica Tema A Tema, onde analisam ao mais sacrossanto pormenor, tema a tema (lá está), o seu recente e explosivo álbum «Hóstia». Não podíamos de facto ter começado da melhor maneira. Mergulhemos no louco mundo dos Filii!

  1. «Prece»

Belathauzer: É um poema invocatório que abre e encerra a «Hóstia», dito pela tradicional cúmplice da banda, Perpétua. É a nossa oração do vício, que dedicamos a todos os crentes de todas as religiões: “Nossa Senhora do Senhor, assassino dos mortais: rogai pragas a nós, pecadores banhados no leite dourado das entranhas de Satã… Não nós deixeis deixar de pecar!” Poesia ou, como dizem os pirosos e os modistas (“hipsters”, sorry) da cultura agrária-gregária: “spoken word”.

 

  1. «Pó»

Belathauzer: “Intemperança… A fome é negra“. A pobre condição humana de ser pó e das pessoas se acorrentarem umas às outras e a outros pós, a carnes, a conceitos, a crenças. Sintetiza conceitos chave do resto do disco, conceitos chave que não abrem nenhuma porta, na verdade. Tem duas alusões literárias: «Vermes: Irmãos» e «Canto A Tormenta». A inumana condição da humana pessoa. Do cão, do porco e da galinha. Musicalmente foi totalmente criada a três, nos infames Almada Estúdios, e é exactamente o género de metal que defendemos, o panmetalismo: death, black, heavy, thrash, tudo junto. A três: Maalm é um baterista criador, ele é capaz de se levantar da bateria e pegar numa guitarra e zás, desencanta um riff; o mesmo se aplica ao Helregni, que aqui tem maior presença vocal do que nunca antes (e em breve, Ironfist, o novo guitarrista que aqui ainda não estava na banda mas que tem tocado ao vivo e gravou os solos do «Fellatrix», revelará a sua face mais obscura of death). Quanto a mim, tirei o açaime e atirei a voz para caminhos que ainda não tinha explorado. E estou muito orgulhoso pelo resultado. Se o black metal não for heavy, será menos black e menos metal. Algum dia teremos o black metal original de volta. Quiçá. Nós, nunca deixámos de ser black metal fiel às raízes: verdadeiramente, heavy metal cru, directo, selvagem, cantável ou, pelo menos, urrável.

 

  1. «Lactância Pentecostal»

Belathauzer: Chamamos a atenção para a importância do sangue e do leite nos vários monoteísmos surgidos naqueles calores delirantes do eixo Jerusalem-Meca. Aleluia, pois o rebanho de Deus é submisso, e as mulheres estão bem acorrentadas: Deus é grande e jorra rubicundos leites sem lactose sobre as nossas humildes, pobres e miseráveis testas! De joelhos é sempre melhor (a experiência religiosa): “Empalada, imaculada / Protegida por 1.000 véus /Foste eleita para a obediência: concubina do Senhor“. Musicalmente, gostaria de destacar a brutalidade hiperbórea das batidas e a presença carregada de espiritualidade do Coro Lésbico-Gospel da Igreja de nossa Senhora da Pent’Agonia. O Imperador Décio no seu melhor.

 

  1. «Misericórdia»

Belathauzer: O amor de Deus manifesta-se através da hóstia (por via oral, ou outras), ou (em ecossistemas mais solarengos) mediante a caridosa prática da lapidação. Cada uma das pedras utilizadas numa boa lapidação, daquelas que agradam ao Senhor, são lágrimas de Nossa Senhora de Fátima que, juntas e bem cimentadas, erectarão um novo Muro das Lamentações e lembrará aos ateus, agnósticos, libertinas e cépticos em geral que Deus é infalível e com bombas atómicas ou calhaus é e será “forever the one and only“. Motherfucker, Amen LOL of death.

 

  1. «Autos De Fé»

Belathauzer: Metal clássico q.b., com introdução de inspiração clássica, composição trabalhada à distância por um lendário camarada de armas (ver os créditos). Entre Priest e Voivod, com um toque de Crüe e death metal pós-pessimista a dar com pau. Letra: a alegria do linchamento, a fruição colectiva da matança de indivíduos que os povos em geral, e sazonalmente, demonstram. O povo é gregário, e a nação é o povo. É uma continuação da «Rebanho De Lobos». E a ligação entre a libido e o sadomasoquismo religioso. As estruturas ideológicas monoteístas têm aquele interessantíssimo e cativante balanço entre o oral e o anal, a matança ilimitada e o gosto pela flagelação e por dar a outra face, é fascinante. Por vezes pergunto-me como será isso de ser “crente”. É alucinante. Psicopatas delirantes. E é deles o poder, são eles “o povo eleito”: “Deixem as putas arder“.  Tem algo a ver com a letra de «For All Those Who Died», de Bathory. Só que eu agora meto sempre humor nas letras. Aliás, nós. Este disco tem muito de toda a banda, até nas letras. O rock’n’roll só faz sentido se for para gargalhar. A gargalhada, o riso em todas as suas formas, é a máxima manifestação do nosso orgulho individual face a todas as estruturas repressivas que nos limitam o ser. Mas este é um assunto para outra ocasião…

 

  1. «Hóstia»

Belathauzer: Novamente, a função gastro-intestinal da hóstia. Poderia falar um pouco da capa criada por Paolo Girardi a partir de um esquema prévio (mal) criado por mim, curiosamente na cidade de São Paulo, perto do bairro de Santa Madalena… Eu próprio estou impregnado com tanta santidade. Tudo à nossa volta nos viola de santidade, nos penetra teopsicoticamente: a alma, os instintinos, o fígado. Quem pela boca entra… por vias do Senhor há-de sair. Os últimos rascunhos das letras foram escritos num caderno lírico-javardo, que fiz questão de benzer com água benta (infecta) da Igreja de Santo Agostinho, em Roma. Passeei este caderno pelo Vaticano. São letras, por isso, vaticanais. Fiz isto antes de gravar a voz. Aspergi com águas bentas da pia baptismal as letras que, dois dias depois, começaria a gravar no Pentagon (Olival Basto/Senhor Roubado). Algo parecido aconteceu com o «Fellatrix». Também embebi o caderno das sessões de gravação em água bentaporca, mas neste caso foi na Igreja da Madonna del’Orto, em Veneza. Interessante, porque também pode ser Madonna Nera del’Orto. Enfim, acho que a bondade e a qualidade vocal deste disco (e do «Fellatrix») tem a ver, em grande medida, com este apoio vaticanal que fui pedir, eu Belathauzer Peregrino, e que me foi concedido. Deus, o Deus das três grandes religiões multinacionais, quis que a obra nascesse. Todas as nossas criações procuram a elevação dos jovens (até aos 89 anos), que por vezes vagueiam perdidos, sem valores, por cidades cruéis que não lhes dão o afecto de que eles precisam. E bebem cerveja e álcool até! Inclusive, fumam, fazem coisas feias e porcas com as mãos e com os pés. Bebem álcool em copos de plástico. Inaceitável. Porca miséria. Então, nós dizemos aos jovens do metal: filhos e filhas de Deus, tomai lá esse grande abraço. Deus é vosso amigo. Amigos, amigos, negócios à parte. E a Deus o que é de Deus. “De joelhos no altar: abre os lábios do teu céu: extracção dominical: se tens Fé, deves me amar“. Nada melhor para um Domingo de manhã do que dar largas à fé e extrair a lactância nossa de cada dia. Consolida a comunidade.

 

  1. «Virtudes Da Prostração»

Belathauzer: As religiões são óptimas a gerar mecanismos de repressão individual e colectiva, são ferramentas utilíssimas para criar escravos. Aqui podemos estender a analogia trela-correntes-castração a qualquer nível das rAlações humanas e entre pessoas, objectos e animais. Adoro observar pessoas com os seus cães: amos, donos, e servos. Cães, telemóveis, namorad@s. É uma fonte de inspiração permanente, observar o animal humano em acção. Se fosse um eremita isolado do Mundo, acho que ficaria sem ideias. Ou então passaria a ter ideias de eremita, puramente religiosas, isto é: provavelmente, deixaria de pensar. A última secção é uma homenagem a uma grande influência nossa, os Thormenthor almadenses (que por sua vez chega aos Voivod, claro, e aos Coroner).

 

  1. «A Morte é Real (Para Já)»

Belathauzer: Esta canção é uma canção especial. Este croquete intitulado «A Morte É Real (Para Já)» é uma letra à parte, porque tem um estilo pré-«Pornokrates». A partir de 2013 comecei a meter um sentido do humor nas letras que não existia em canções anteriores a esse momento. Se me falares da «Necropachacha», essa microcantiga não conta, porque era uma letra a gozar expressamente, contra a moda gó-gó das milfolhas, referência que tenho de agradecer aos Vizir e aos Panzerfrost das Caldas (grande centro de inspiração espiritual, o melhor depois do Vaticano), e contra o black metal sem riffs. E por isso fizemos uma canção composta apenas por um riff, e em homenagem aos mestres a fazerem temas de riffs, sucintos e sintéticos (no melhor sentido): os Decayed. No caso presente, «A Morte É Real (Para Já)» exprime um nojo em relação à vida, um cansaço e uma repugnância face a outros humanos, isto é, a vida quotidiana. É uma letra sem sentido do humor. Aquela ideia de que “tudo à volta é tão irreal” e de que é igual ao litro viver ou não. Acontece, de vez em quando. A vida convida a desejar o seu final, ou pelo menos algum género de suspensão temporária. PORÉM, uma vez que nós não queremos que os apreciadores das nossas actividades deixem de viver, porque nesse caso ficaríamos sem público e os concertos seriam tristes e cabisbaixos, quis incluir no título uma nota trocista, que é o “para já”. De qualquer modo, é uma canção única em vários sentidos: tem inflexões e tons de voz nunca antes por mim experimentados, e a música é (quase) 100% heavy metal, cuja máxima prioridade é o poder, a potência, e isso é sempre BOM.

 

  1. «SMRT/NADA»

Belathauzer: Quando gravámos o «Hóstia», nem nos passava pela cabeça editar pela Osmose. Já tínhamos arquivado a ideia, há anos. Gravámo-lo porque sentimos, todos, que tínhamos de o fazer. Curiosamente, esta canção é a mais black metal de todas as do LP, no sentido genuíno da palavra, isto é:  Sodom/Sarcófago/Hellhammer. E ainda mais curiosamente, meti na cabeça que haveria de ser em língua checa, e com o curso de iniciação que mal e porcamente perfiz há alguns anos lá consegui escrever versos muito básicos mas que são uma espécie de síntese da nossa atitude desde o início: Traduzo: “Somos companheiros do trabalho de Satanás / Nos métodos do Pentagrama“. É uma homenagem aos Master’s Hammer e aos Root, e à cerveja Kozel. E acho que poderá ter agido misticamente para o disco ter o selo da Osmose. É um tema que esperamos que os metaleiros portugueses venham a cantar connosco: “Jsem cervena smrt: Metody pentagramu“…

 

  1. «Raze The Dead (Of Death)»:

Helregni: A «Raze The Dead (Of Death)» é um tema que fizemos em trindade a partir de uns riffs que levei para o estúdio de ensaio. O Belathauzer decidiu enquanto o ensaiávamos cantar “raise the dead” e pegou. Para de algum modo a distinguir relativamente aos temas homónimos de Venom e Bathory, resolvi escrever o título com z e alterar a própria acção predicativamente enunciada em imperativo sobre os genéricos finados. O Belathauzer acrescentou o “of death“, complemento determinativo que descobri após estudos adequados melhorar automaticamente 78,5% de qualquer título de música de âmbito metálico quando colocado no seu final. Após tudo isto, enquanto esperava numa paragem de autocarro do Senhor Roubado que o Belathauzer chegasse na sua viatura para adentrarmos o estúdio de gravação, fui por ele telefonicamente exortado a escrever eu a letra e a depois cantar o tema. Rapidamente saquei de um bloco e escrevi as primeiras quadras que me vieram ao cérebro e, tal como um sinal dos céus, assim que terminei eis que Belathauzer tinha chegado e era tempo de gravar! Aleluia of death!

Belathauzer: A lenda do Senhor Roubado é maravilhosa. Recomendo uma peregrinação até os painéis de azulejos oitocentistas do Senhor Roubado (concelho de Odivelas, onde estava o célebre convento-bordel-casa de pastos para reis que a história conta).

Foto: Estefânia Silva