TOPS 2018: Facas em sangue

Filho bastardo do punk e do metal, o noise rock ganhou proeminência nos anos 90 com o aparecimento de projectos como Unsane, The Jesus Lizard ou Cherubs e, sobretudo, do selo independente norte-americano Amphetamine Reptile, que mostrou ao mundo nomes tão respeitados hoje como Helmet ou Today Is The Day. Música barulhenta, pesada, muito estranha, antagónica e até um tanto imprópria, que combinava na perfeição com a época em que foi criada.

O mais curioso é que, apesar da mudança dos tempos e das vontades, essa sonoridade nunca desapareceu. Quase 30 anos depois, o noise rock continua a ser tão dissonante como na génese, mais pesado que muitas bandas ditas “extremas” e carregado de humor negro e muito sarcástico – constantemente no precário equilíbrio entre uma salutar dose de comédia negra e a seriedade que se pretende de música essencialmente antagónica.

Olhando para trás, não é difícil perceber que o estilo tem estado sempre em movimento e, hoje em dia, está inclusivamente a gozar um (muito aplaudido, pelo menos aqui por estes lados) ressurgimento na orla mais underground do rock barulhento. Tendo isso em mente, aqui fica uma lista dos dez melhores lançamentos do género, no seu sentido mais lato, editados no ano que passou.

01
DAUGHTERS

«You Won’t Get What You Want»


Poderá um disco ser tão belo e tão tenso que, de tão belo e tenso, nos deixa esgotados? Os (sempre em mutação) Daughters responderam a à pergunta, com um perentório sim na forma do seu quarto disco de longa-duração. Oito anos depois de se terem separado por “tensão interna extrema”, os norte-americanos voltaram à carga para mostrar que, se ainda ansiamos por espasmos à «Canada Songs», não podemos ter tudo o que queremos. Se deixarmos a bagagem para trás e estivermos disponíveis a ser surpreendidos, no entanto, o «You Won’t Get What You Want» revela-se um dos mais intensos discos de 2018 no campo da música pesada – seja numa lista de noise rock ou de outro estilo; por esta altura já estão muito longe de chavões. É nesse estilo, no noise rock, que os temas se enquadram, todos feitos de tensão e angularidade, abrasiva e doce em partes iguais, como se Alexis SF Marshall e companhia tivessem assumido de uma vez e, sem ponta de vergonha, a sua bipolaridade. Do alto dos seus 48 minutos, este disco tem tanto tempo de duração como os últimos dois juntos e quatro vezes mais que a estreia, por isso está bom de ver que, ao invés das explosões gratuitas de barulho de outros tempos, os Daughters agora preferem picar-nos o miolo em câmara lenta. As influências mais óbvias (The Jesus Lizard e Birthday Party) ainda estão presentes, mas foram transmutadas através de doses muito generosas de electrónica e percussão tribal, numa reinvenção genial. E ajuda que, vocalmente, o Marshall se assemelhe a um David Yow para o novo milénio, claro que sim.

02
KEN mode

«Loved»


Em «Success», de 2015, os canadianos KEN mode abandonaram a natureza dinâmica que tantos elogios lhes valeu em «Entrench» a favor de uma abordagem bastante mais directa – que serviu, essencialmente, para homenagear o noise rock dos anos 90. Em «Loved» mantiveram a visão – temas como «Doesn’t Fell Pain Like He Should» e «Very Small Man» remetem para todas as bandas barulhentas e pouco preocupadas com as melodias da Amp Rep –, mas desta vez os músicos canadianos recuperaram algum do dinamismo que os caracterizou no passado (ouça-se, por exemplo, o sax endiabrado na «The Illusion Of Dignity», os exercícios lounge ao longo da «This Is A Love Test» ou o experimentalismo de «No Gentle Art») e criaram um registo que, durante 35 minutos, agarra o ouvinte pelo pescoço no início e só o larga no final, totalmente desorientado e com vontade de enfiar umas murraças num saco de areia.

03
THE ARMED

«Only Love»


Em «Only Love», este colectivo de Detroit – que não tem formação fixa e gosta de actuar sobre outras designações – criou uma verdadeira bomba refractária de pós-punk/hardcore e noise rock angular, encharcado em electrónica a roçar o noise e apimentado por melodia orelhuda. A fusão é, além de curiosa, sui generis, sendo que, em temas como «Witness» e «Fortune’s Daughter», a banda consegue o impensável. Apostando na barragem de som distorcido – três guitarras, três vozes (duas masculinas e uma feminina) e camadas de synths, tudo apoiado numa secção rítmica coesa e maleável, equilibradas na perfeição pelo exímio Kurt Ballou –, o colectivo consegue manter o ouvinte interessado com temas memoráveis, polvilhados por mantras que perduram no ouvido muito além do que seria expectável de um disco que, verdade seja dita, é o proverbial “caos armado”.

04
UNIFORM

«The Long Walk»


Mais associados ao punk rock e ao industrial que propriamente ao noise rock, os Uniform são provavelmente uma das bandas mais antagónicas e barulhentas da actualidade, o que faz com que mereçam o lugar de destaque que ocupam nesta lista. Para além disso, num universo em que as regras estão há muito estabelecidas, é salutar sermos surpreendidos – e, neste caso, por um grupo que consegue fazer noise rock sem recorrer aos chavões do género. Após o enorme sucesso de «Wake In Fright», «The Long Walk» refinou e elevou o bombardeio sonoro protagonizado pelos nova-iorquinos a territórios ainda mais violentos. Ben Greenberg criou atmosferas cativantes e alguns dos riffs mais contundentes, Michael Berdan rosna de forma venenosa ao longo de todo o disco e, com Greg Fox (dos Liturgy) sentado atrás do kit de bateria em vez da caixa-de-ritmos, estes 8 temas mostraram uma banda extremamente focada, a disparar com todos os cilindros e com sede de sangue.

05
THROAT

«Bareback»


O facto de serem a banda de abertura de eleição quando ícones como Unsane ou Torche passam pela Finlândia, já diz muitíssimo em relação à qualidade da música dos Throat – e «Bareback» desvaneceu quaisquer dúvidas em relação a isso. Quando comparado com a estreia «Manhole», de 2013, o segundo álbum do quarteto oriundo de Turku apresentou-o menos acorrentado às grilhetas estilísticas do noise rock, extrapolando as suas fronteiras e explorando outras texturas, menos focadas na raiva uni-dimensional do seu predecessor. No espaço de cinco anos, os músicos tiveram tempo de sobra para crescer e explorar toda a versatilidade do seu som, com «Bareback» a afirmar-se como mais que “apenas” uma colisão de noise rock, pós-hardcore e sludge. Não estranhamente, em 2018, houve poucos discos capazes de cobrir uma paisagem sonora tão diversa no espaço de 43 minutos.

06
WRONG

«Feel Great»


Oriundos de Miami, na Florida, os Wrong são uma espécie de super-banda do undergound local e incluem na formação actuais e ex-elementos dos Capsule, Torche e Kylesa. Parte do catálogo Relapse, destacaram-se desde cedo num oceano de brutalidade gutural com a sua abordagem viciosa ao noise rock bem pesadão, apoiado em riffs avassaladores e que se baseia fortemente no livro de regras estabelecido nos anos 90 pelos Unsane e, sobretudo, pelos Helmet. Estão, no entanto, muito longe de ser meros imitadores e, em «Feel Great», que consegue soar mais rápido, mais cruel e ainda mais melódico que a estreia homónima de 2016, colocaram finalmente uma marca própria num som que já se pode considerar clássico, criando algo que é verdadeiramente seu.

07
GREAT FALLS

«A Sense Of Rest»


Lançado apenas na recta final de 2018, o regresso dos Great Falls aos álbuns correu um sério risco de já não figurar nesta lista, mas como sabíamos da sua existência, optámos por não a fechar sem o ouvir. E em boa hora tomámos essa decisão, porque «A Sense Of Rest» é um verdadeiro portento de agressividade angular e cerebral, que faz total justiça à linhagem estabelecida pelos seus elementos nos Kiss It Goodbye e Playing Enemy. Depois de uma década passada a lançar demos, EPs e até alguns álbuns, o grupo atinge o “ponto de rebuçado”, com um registo estranhamente atraente. Porquê “estranhamente”? Porque «A Sense Of Rest» está o mais distante possível do que as pessoais “normais” procuram na música extrema. Não é rápido, não é melódico, não há riffs para abanar a cabeça. Não há nada disso. O que há é um enorme sentimento de raiva e rejeição, feito híbrido de pós-hardcore e noise rock, que os Great Falls elevam a um nível de peso inaudito.

08
BUMMER

«Holy Terror»


Formados em Kansas City, no Missouri, os Bummer lançaram este ano o álbum de estreia, mas mostraram desde logo saber exactamente como criar o híbrido perfeito de noise rock e sludge porcalhão. «Holy Terror» canaliza a sonoridade e atitude que associaríamos ao sonho molhado que seria uma banda da Amphetamine Reptile tornar-se mainstream, mas manter-se tão feia quanto possível. Do início ao fim, esta colecção de dez temas contém grandes canções de rock pesado e barulhento, com o ocasional apontamento punk, que acabam por soar como os Nirvana do «Bleach» a fazer versões de temas do «Hell Awaits». Acima de tudo, os Bummer são agressivos e directos, mas não economizam na melodia, o que lhes permite escreverem canções extremas, mas memoráveis.

09
ÅRABROT

«Who Do You Love»


Injustamente ignorados durante mais tempo do que seria razoável, este grupo liderado por Kjetil Nernes deixou de ser um nome underground – no seu país natal, pelo menos – no momento em que ganhou um Grammy com «The Gospel», de 2016. Nada interessados em ficar agarrados à fórmula, os Årabrot decidiram revelar o quão ousados podem ser no seu sétimo longa-duração desde que se juntaram em 2001. «Who Do You Love» afirmou-se como um registo invulgarmente melódico, em que o grupo faz sentir mais que nunca a influência do pós-punk no seu som. Desta vez, o resultado final teve mais de The Birthday Party, The Jesus Lizard ou Oxbow que de Melvins, mas não há como não aplaudir o facto de uma banda deste calibre ainda assumir novos riscos para criar um registo moderno de noise rock, que foge às regras e aos clichés do estilo em que se insere.

10
HEADS.

«Collider»


Graças à enorme paixão dos seus elementos pelo noise rock mais esotérico e pelo proto-sludge de meados dos 80s e início dos 90s, este trio conseguiu encontrar terreno comum entre Melbourne e Berlim para criar música em conjunto. O resultado apresentado neste primeiro longa-duração situa-se entre as melodias pegajosas exploradas pelos Failure e a visão expansiva do noise protagonizada pelos Unwound, com grande parte dos dez temas a alternarem descargas de guitarra distorcida, linhas de baixo elásticas e um registo vocal que traz à memória Michael Gira. Apropriadamente atmosférico e com um indelével toque de modernidade, este é um daqueles discos perfeitamente capazes de agradar a fãs dos Bitch Magnet ou dos Melvins.