Gojira

VOA – Heavy Rock Festival @ Estádio Nacional, Oeiras | Dia 1 – 30.06.22 [reportagem]

Faltavam cinco minutos para a hora marcada, quando a BIZARRA LOCOMOTIVA deu início à maratona de concertos no Estádio Nacional. Com a “escumalha” sedenta por acção, o quarteto liderado por Rui Sidónio arrancou com firmeza e, entre temas mais recentes como «A Flauta Do Leproso») e alguns clássicos («O Anjo Exilado» e «Escaravelho»), conseguiu criar em pouco mais de meia-hora um retrato muitíssimo equilibrado do que é o seu fundo de catálogo. Dúvidas restassem, aqui ficou mais uma prova irrefutável de que, tantos anos depois de se terem feito pela primeira vez à estrada, continuam a circular a todo o gás. Já o escrevemos aqui, e não nos cansamos de escrevê-lo, por isso aqui vai mais uma vez: a estreia em nome próprio dos KVELERTAK em Portugal já começa a tardar, mas pelo menos a banda até tem dado um ar de sua graça por cá e vai fazendo alguns “suportes” de respeito. Primeiro, vimos a estreia ao lado dos Metallica na Altice Arena; depois, a tocar para um público mais receptivo ao seu rock’n’roll injectado de black metal, como banda de suporte na última passagem dos Mastodon por cá; e, agora, no palco do VOA – Heavy Rock Festival, com a árdua tarefa de suceder à mais demolidora de todas as locomotivas engrendradas em solo nacional. Desta vez puseram muito boa gente de punho no ar e a cantar, o que é um feito se tivermos em conta que se expressam na sua língua materna. Ivar Nikolaisen, que substituiu Erlend Hjelvik atrás do microfone no Verão de 2018, revelou-se um verdadeiro dínamo de energia, enquanto berrava de forma esforçada temas como «Rogaland», «Bruane Brenn» e «Blodtørst». A recordar um Joey Ramone se o nova-iorquino fosse mais franzino e tivesse crescido a ouvir Darkthrone, o músico tem uma presença inegável e, apoiado no trio de guitarristas e numa secção rítmica incrivelmente sólida, comandou com firmeza o bailarico de punk, rock clássico e metal que terminou com o cantor a acenar uma enorme bandeira sobre as filas da frente. Digamos que, pelo entusiasmo demonstrado, ninguém se sentiu defraudado com a prestação dos seis músicos noruegueses.

Quando se fala em KREATOR tem de se falar, inevitavelmente, de perseverança. Mille Petrozza, a única constante na formação da banda ao longo das últimas quatro décadas, não perdeu muita da força que sempre caracterizou o seu grito rouco apesar ter feito 54 anos há uns meses atrás e, pelo que nos é dado a crer, a única concessão que fez à idade parece ser a inclinação do microfone para baixo, tal como Lemmy costumava fazer, tornando mais fácil passar uma hora aos gritos. Com um enorme fundo de catálogo à escolha para elaborar o alinhamento, de há uns anos a esta parte os thrashers germânicos optam por dividir as suas actuações em secções distintas, uma elaborada a pensar na secção mais geriátrica da plateia, ontem mais reduzida do que é habitual, e outra composta por temas dos lançamentos mais recentes. É certo e sabido que, ainda mais em contexto de festival, a opção de destacar material novo acaba por revelar-se frequentemente um erro mas, à semelhança do que têm sabido fazer em estúdio, em palco os KREATOR conseguiram provar uma vez mais que estão a produzir thrash de qualidade há décadas, mesmo depois de muitos dos seus pares terem saído de cena ou andarem a arrastar penosamente o cadáver. Verdade seja dita, os temas da novidade «Hate Über Halles» soaram como petardos, assim como o derradeiro tema do alinhamento, «Pleasure To Kill», dominador e de tirar o fôlego, ao ponto de quase nos fazer esquecer que ignoraram totalmente um álbum tão marcante como o «Extreme Aggression».

Em comparação com os seus pares europeus, os MEGADETH sempre foram uma proposta mais intrincada e cerebral, isso já sabíamos. E também já era do conhecimento geral que, por esta altura, a banda é Dave Mustaine acompanhado por uma série de músicos topo de gama contratados: o baterista belga Dirk Verbeuren, o guitarrista brasileiro Kiko Loureiro e o baixista James Lomenzo, que substituiu recentemente David Ellefson, membro fundador dispensado abruptamente durante o ano passado. O que ainda não tínhamos tido oportunidade de comprovar é que esta é a formação mais forte que tiveram nas últimas décadas, executando de forma incrivelmente limpa o metal de precisão, muitas vezes singular, que sempre caracterizou o grupo de Los Angeles. E, no entanto, aquilo a que assistimos foi a uma actuação ligeiramente acidentada. O concerto começou de forma apoteótica com a colossal «Hangar 18», mas os músicos receberam uma recepção mais fria logo ao seu segundo tema, «Dread And The Fugitive Mind», que a espaços soa como uma revisão de uma canção bastante melhor, a «Sweating Bullets», que por acaso até foi tocada mais à frente no alinhamento. «She Wolf» e a instrumental «Conquer… Or Die!» soaram algo supérfluas ao lado das mudanças de ritmo selvagens de «Tornado Of Souls» e «Dystopia». Por seu lado, a roqueira «Trust» e a balada «A Tout Le Monde» estiveram ali no limiar do bocejo antes de Mustaine e companhia se atirarem à santa trindade composta por «Symphony Of Destruction», «Peace Sells» e «Holy Wars… The Punishment Due», com as cabeças do público a balançarem em aprovação.

Por esta altura, bastava olhar à volta para perceber que, dê lá por onde der, não é provável que venhamos a assistir a um espectáculo desta gente em que não toquem esses três temas. Apesar de alguma previsibilidade, e dos altos e baixos, há, no entanto, algo importante e indiscutível a reter: Mustaine é um estadista do thrash, merece recolher todos os elogios possíveis por ter escrito alguns dos melhores riffs e solos do género (incluíndo a fase em que esteve na outra banda cujo nome começa por M e que, para manter o respeito, não vamos nomear aqui), e sempre aderiu a um sentido inabalável de cuidado musical. Além disso, é um sobrevivente como poucos – da dependência de drogas, dos danos nos nervos que quase o tornaram permanentemente incapaz de tocar guitarra e de um cancro na garganta que aprofundou um pouco o seu excêntrico registo vocal. Que, aos 60 anos, ainda suba a um palco, como fez ontem no Estádio Nacional, para cuspir thrash complexo com uma atitude capaz de corar músicos com metade da idade, é, sem margem para dúvidas, um feito espantoso. E sim, pode ser um músico notoriamente rabugento, mas ontem à noite ficou no ar a ideia de que estava apenas feliz por estar vivo e a tocar em frente de uma multidão.

Depois do espectáculo de ontem à noite, não é difícil argumentar que, num par de anos, os GOJIRA podem transformar-se numa das bandas mais influentes e importantes na música pesada contemporânea. Tal como muitos dos pioneiros que vieram antes deles, os músicos franceses têm empurrado constantemente o envelope – não só da sua própria música, mas do próprio género. Os primeiros álbuns que lançaram desafiaram o que muitos acreditavam que a música pesada podia (e deveria) ser, enquanto lançavam as bases para o que viriam a fazer em «L’Enfant Sauvage», «Magma» e o mais recente «Fortitude», três discos que podem bem alterar a paisagem da música pesada para as gerações vindouras. Só isto, mesmo sem falar em números de streams e cópias vendidas, já seria suficiente para justificar, se fosse realmente necessário, o posicionamento acima da banda de Dave Mustaine neste cartaz, mas a verdade é que o «Fortitude», de 2020, não é nada menos que um triunfo, um petardo que encerra aquilo para o qual a banda andou, aparentemente, a trabalhar ao longo de toda a sua carreira. Resultado, numa altura em que a maioria das bandas luta para conseguir produzir um simples single de um álbum que valha a pena levar em digressão, os GOJIRA criaram uma narrativa com princípio, meio e fim, que fornece ao ouvinte a oportunidade de descobrir algo novo a cada vez que pressiona o play e que prometia crescer muito em palco.

E depois… A pandemia meteu-se no caminho, pois claro. Há mais de um ano que os fãs antecipam ansiosamente que a banda liderada pelos irmãos Duplantier pudesse voltar à estrada para fazer uma digressão de promoção adequada tendo como base estes temas, e ontem, no Estádio Nacional, o quarteto fez tudo o que estava ao seu alcance para compensar as massas pela sua paciência. Apesar do facto de fazerem música pesada, os GOJIRA são tudo menos óbvios e, se em disco proporcionam ao ouvinte a oportunidade de ir explorando as muitas camadas e nuances intrincadas que existem no seu o ADN musical, é ao vivo que todas as emoções contidas nos seus temas têm realmente a liberdade de que precisam para libertarem a emoção visceral que os caracteriza. Quer tenham sido as dinâmicas apertadas de «Born For One Thing», tema de abertura do disco e do concerto, a piscadela de olho assumida aos Sepultura de «Amazonia» ou a técnica progressiva de «Another World», a verdade é que o material do «Fortitude» soou imenso num Estádio Nacional rendido ao quarteto. Dúvidas restassem, os fãs reagiram ao material novo com o mesmo fervor suscitado pelos clássicos, com os indefectíveis a serem presenteados com as recuperações muito celebradas de «Backbone», do «From Mars To Sirius», de 2005, e do tema-título do «L’Enfant Sauvage», de 2012. Resultado, com os músicos em topo de forma apoiados num espectáculo visual cuidado, e um alinhamento a que nenhum fã pode apontar quaisquer defeitos, assinaram uma actuação triunfal, que compensou totalmente o tempo que tivemos de esperar para os rever em palco.