VIRA O DISCO, TOCA O MESMO.

Está aí mais um Record Store Day e, mesmo que a ideia inicial tenha sofrido já grandes alterações e um dia que se pretendia celebratório de quem sempre acreditou no futuro do formato físico se tenha transformado em mais uma manobra capitalista das majors, podemos usá-lo como desculpa para gritar “vida longa!!!” a uma paixão que teima em não morrer. É certo que a lista de lançamentos, com mais de 500 títulos, tem pouco que apaixone –- salvam-se o 7” dos Led Zeppelin, um LP ao vivo dos The Stooges e pouco mais –-, mas fora do frenesim do RSD (que, diga-se, ao fim de onze anos ainda continua a ter expressão apenas residual por cá) ainda há, como sempre houve, lançamentos que merecem atenção. Em vários formatos, uns mais luxuosos que outros, é certo, mas todos palpáveis, daqueles que se podem cheirar e tocar ao contrário de um streaming.

Não estranhamente, porque por esta altura já devem ter visto o Lindberg na capa da edição de Abril, «To Drink From The Night Itself», o novo álbum dos lendários At The Gates é um deles. E é um daqueles, não tão raros quanto se julga, que valem mesmo a pena tirar o rabo do sofá, sair de trás do ecrã do computador, ir até à loja de discos mais próxima (de preferência uma em que conhecem quem está atrás do balcão para darem duas de treta), não ligar ao telefone durante um bocado e mergulhar de cabeça nos escaparates. Não o encontram? Encomendem-no, desliguem da lufa lufa do dia-a-dia (tudo muito rápido, mais rápido, rápido) e, quando se sentarem a ouvi-lo uma ou até duas semanas depois, porque verdade seja dita um álbum será um álbum uma, duas ou três semanas depois, vão sentir como é algo muito, muito especial.

Parece conversa pré-histórica, não é?, mas naquela época sombria em que a tecnologia ainda não marcava uma presença tão dominante nas nossas vidas, as lojas de discos, vulgo “discotecas”, costumavam fazer muito mais que vender diferentes estilos de música. De gente que, na maioria dos casos, dedicava a vida a apreciar e coleccionar discos, para gente que fazia exactamente o mesmo. As histórias de relações duradouras estabelecidas depois de um simples roçar de cotovelos a vasculhar na prateleira das novidades são mais que muitas. É fácil acreditar que muitas vidas mudaram para melhor em lugares que, pese o inevitável romantismo que a passagem dos anos lhes dá, eram mágicos.

Em sítios como a Bimotor, a Torpedo, a Tubitek, o próprio acto de procurar um qualquer álbuns daqueles que nos está-a-fazer-mesmo-falta! transformou-se numa forma de arte por si só e, para muita gente, no mais inebriante de todos os potenciais vícios oferecidos pela sociedade moderna. Depois, primeiro com o surgimento das cadeias de “discotecas” e, uns anos mais tarde, com o advento da net, a aquisição como experiência perdeu o valor para muita gente. Os elementos mágicos do produto físico – as capas, os créditos, os agradecimentos que tantas bandas nos deram a conhecer – deixaram de ser importantes. Nesse momento, correu-se o risco de relegar todo um mundo de descoberta a pouco mais que relíquias longínquas de uma era passada.

É fácil ser cínico em relação ao RSD, o júri ainda está para decidir se faz melhor ou pior ao negócio das lojas e editoras independentes, mas não há como não esboçar um sorriso face à ideia de que, entretanto, milhares de pessoas despertaram para o apelo do objecto físico. A coisa é mais ou menos clara, dependendo apenas do nível a que chega o vosso fetichismo da música – ao tornar tangível algo abstrato como o som, o disco permite-nos segurar a música nas mãos, tocá-la com os nossos dedos. E quem não sente necessidade de tocar o que ama?

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